Você realmente sabe como funciona a Lei Rouanet?
Ou só ACHA que sabe e sai falando um caminhão de lugares comuns pelas redes sociais, repetindo o discurso pronto de muita gente que inclusive está no próprio governo?
Por THIAGO CARDIM
(publicado originalmente no JUDÃO.COM.BR)
Diplomata, filósofo e professor universitário, o carioca Sérgio Paulo Rouanet, do alto de seus 88 anos, tem ouvido recentemente o próprio sobrenome como nunca sequer tinha imaginado que ouviria na vida. Secretário de Cultura do governo do então presidente Fernando Collor de Mello, ele foi o responsável pela Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991) – a famigerada Lei Rouanet.
Sabe do que se trata, né? SABE ou acha que sabe? A grande maioria das pessoas pensa que a Lei é uma coisa, mas não faz sequer ideia de como a coisa funciona – o que, em nenhum momento, significa que ela não seja uma lei que tenha problemas. Isso tem. Mas vamos falar deles um pouco mais pra frente.
Oficialmente, o objetivo da Lei Rouanet “é promover, proteger e valorizar as expressões culturais nacionais por meio de incentivos fiscais”, permitindo “assegurar e conservar o patrimônio histórico e artístico no país por meio do estímulo à difusão da cultura brasileira e da diversidade regional e etnocultural”.
Mas e como diabos esta tal desta lei funciona, assim, na prática?
A lei é formada essencialmente sobre um tripé, com três instrumentos de atuação. O primeiro é o Fundo Nacional da Cultura (FNC), que tem verbas vindas diretamente do governo – e que, em sua maioria, auxilia principalmente Prefeituras Municipais e entidades ligadas ao próprio Ministério da Cultura (MinC). Depois, vem o Fundo de Investimento em Cultura e Arte (Ficart), que permitiria comprar cotas de um projeto e ter retorno em cima dos lucros, meio que se tornando seu sócio. Como o Ficart acabou não sendo nunca oficialmente criado, o ministério faz uso do FNC, originalmente voltado para projetos com menor possibilidade de captar recursos, para todos os projetos relacionados.
Existe ainda um modelo mais comum e que é aquele mais largamente utilizado, o Mecenato, que apoia projetos enquadrados nos artigos 18 (artes cênicas, livros, música erudita, exposições de artes plásticas, doações de acervos para bibliotecas, museus, arquivos e cinematecas públicos, preservação do patrimônio) e 26 (games, música popular, entre outros) da lei.
Basicamente, o Mecenato permite que pessoas físicas e jurídicas possam deduzir do Imposto de Renda até 100% do valor investido em projetos culturais (no caso do artigo 26, pode chegar até 80%) — isso respeitando um limite de 6% do imposto devido no caso de pessoas físicas e de 4% para as empresas. Em outras palavras, se uma empresa dever $100 de imposto, ela pode usar até $4 pra apoiar um projeto — e a partir daí você começa a entender porque, na grande maioria dos filmes nacionais, a gente passa uns 2 minutos só vendo logo de empresas. 😛
No entanto, pra participar dessa política de incentivos fiscais, os produtores e/ou artistas que estejam buscando apoio para os seus projetos não procuram o governo em busca de dinheiro: eles buscam a Lei Rouanet para registrar e cadastrar suas propostas e terem a liberdade de ir buscar dinheiro NO MERCADO, num processo meio complicado.
Primeiro o projeto passa por um exame de especialistas que avaliam a viabilidade técnica da parada (ou seja: dá pra tirar isso do papel ou não?). Ganhou aprovação, ganhou também um número do Pronac (Programa Nacional de Apoio à Cultura). Mas ainda precisa passar pela aprovação das unidades técnicas do Ministério e do CNIC (Comissão Nacional de Incentivo à Cultura).
Conseguiu? Ufa. Agora o seu projeto está pronto para iniciar a captação de recursos. Ou seja: é hora de cair na estrada e visitar as empresas para convencê-las de que o seu projeto é bacana e pode dar a elas suficiente visibilidade. Pastinha debaixo do braço, é hora de ser vendedor. De dizer “meu projeto tem aprovação da Lei Rouanet e, se você investir nele, além de ser mostrado para o mundo, ainda vai poder descontar o valor do imposto de renda”. São as próprias empresas que decidem que projeto vale a pena ou não, seguindo critérios de viabilidade comercial.
LUCRO, basicamente.
Um pouco de história
A Lei Rouanet surgiu em um momento complicado do Brasil para a cultura, é preciso entender – na época, o governo Collor tinha revogado a Lei Sarney, que garantia incentivo à produção cultural, e acabado não apenas com o Ministério da Cultura mas também fechado as portas de órgãos como a Embrafilme (estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes). A ideia foi colocar uma opção diferente nas mãos do próprio mercado, fazendo com que o Governo abra mão de parte dos impostos para que empresas privadas se sintam tentadas a patrocinar eventos culturais. Além disso, pelo menos em teoria, esta seria uma forma de valorizar a marca das empresas perante o público, já que o logo da companhia estaria no pôster, no comercial de TV, no trailer, nos créditos iniciais.
No entanto, ainda assim, existe quem se posicione radicalmente contra este modelo – como é o caso do próprio Juca Ferreira, que foi Ministro da Cultura dos governos Lula e Dilma. “A Lei Rouanet é uma parceria público-privada em que o dinheiro é público e a decisão é privada”, disse ele, em entrevista ao jornal O Globo. Embora afirme saber que o mecanismo foi fundamental para a injeção de verbas na cultura ao longo dos últimos anos, ele lembra que as empresas acabam fazendo muito mais uso do tal do Mecenato do que do Ficart – a diferença entre ambas foi de R$ 1,13 bilhão contra R$ 51 milhões em 2015.
“A Lei Rouanet matou o Ficart no nascimento, já que ninguém quer correr o risco de aplicar dinheiro e ter prejuízo”, explica. Já falando com a Carta Capital, ele foi ainda mais incisivo. “A lei é perversa. Só se aplica a quem tem condições de dar retorno de imagem para as empresas que se associam”, diz. “Não tenho nenhum problema com as empresas, tenho problema com a lei. Ela é injusta, provoca concentração, discrimina, não é capaz de se realizar em todo território brasileiro”.
O ministro diz entender claramente que o o lucro faz parte da atividade cultural — e que sabe bem que, no capitalismo, tudo está regido pela lei da mercadoria, inclusive a cultura — mas diz que a Lei Rouanet fracassou no objetivo de tentar desenvolver um capitalismo cultural, uma economia da cultura. “Privilegiou uma camada de intermediários, com foco na produção de projetos e em sua aprovação nos departamentos de marketing das empresas”. Juca lembra ainda que, apenas em 2014, os produtores de Rio de Janeiro e São Paulo captaram mais do que o Norte e o Nordeste juntos desde 1991, quando foi criada a Lei Rouanet. “No Norte, os incentivos não chegam a 1% ao ano; no Nordeste, nem 5%. Hoje tem produtor em todo o Brasil, o cinema cearense, pernambucano e brasiliense estão bombando. A concentração é tão burra quanto a tentativa de um igualitarismo abstrato”.
O Tribunal de Contas da União (TCU) também parece (ou parecia, até então) concordar com o Ministro, de um jeito ou de outro. Lembremos, lá atrás, que o órgão emitiu uma determinação dizendo que eventos culturais com “potencial lucrativo ou que possam atrair investimento privado” seriam proibidos de receber incentivos fiscais através da Lei Rouanet. A decisão veio depois das análises à regularidade da captação de recursos feita pelo Rock in Rio, que em 2011 captou por volta de R$ 6 milhões de empresas patrocinadoras e que, depois, puderam abater parte deste valor do seu IR. Ainda cabe, no entanto, recurso da decisão e não existe previsão de quando a proibição entra em vigor.
“Não consigo vislumbrar interesse público a justificar a renúncia de R$ 2 milhões de receita do Imposto de Renda em benefício da realização de um projeto com altíssimo potencial lucrativo, como o Rock in Rio”, diz o relator do processo, ministro Augusto Sherman, para a Folha de S.Paulo.
Os técnicos que analisaram a questão e elaboraram seu parecer entenderam que, “apesar de serem moralmente inaceitáveis, os incentivos fiscais não são ilegais”. Mas gente: alguém tinha dúvida de que um evento com o tamanho do Rock in Rio conseguiria facilmente apoio do mundo corporativo, sem ter que entrar com projeto via Mecenato? O mesmo vale para megaproduções, como os musicais que são adaptações de bem-sucedidas peças da Broadway. “A decisão do TCU manifesta um incômodo com uma das distorções da Lei Rouanet. O financiamento pela legislação acaba capitalizado por quem menos precisa e deixa de patrocinar diversas áreas culturais importantes para o Brasil”, concorda o ministro. Qual seria, então, a solução? Para Juca Ferreira, sem sombra de dúvida alguma é o Procultura..
Para o UOL, ele diz que o Procultura vem sendo discutido há mais de uma década e que teria passado pela avaliação direta de mais de “100 mil pessoas” até então. “A gente assimilou tudo de interessante”. Essencialmente, o Procultura mantém os três mecanismos atuais, mas acaba de uma vez com a renúncia de 100% e ainda passa a exigir certa contrapartida do lado do patrocinador, com o objetivo de munir o FNC – que seria dividido por áreas específicas da cultura, cada uma devidamente gerenciada por um conselho de representantes do setor.
“A renúncia fiscal não vai mais ser o mecanismo principal”, explica. “E o projeto cria várias modalidades de colaboração, para que não seja somente o dinheiro gerado pela renúncia. Tem até co-produção. (…) E o Procultura não tem nenhum preconceito contra o grande artista que move uma indústria cultural, nem contra o médio, nem contra o pequeno. É uma lei muito generosa e um passo adiante”.
O que aconteceu com o Procultura? Possivelmente, a mesma coisa que aconteceu com o Ministério da Cultura – que, neste (des)governo, agora nem é mais Ministério e tampouco se preocupa com cultura.
Portanto, vamos lá, a lição que fica é…
Lei Rouanet não é dinheiro que o governo dá pra ninguém. Ponto. Não é “mamata pra artista esquerdista” – até porque MUITOS grandes nomes que apoiam o atual governo, tão crítico desta lei, já fizeram da lei a torto e a direito (ou seria direita?). Mas tampouco é um dispositivo que não mereça ser discutido. Merece e muito. Ser analisado. Ser revisado. E modificado para incentivar DE FATO os pequenos artistas que realmente precisam de ajuda.
Agora, se aquela dupla sertaneja ou grupo de rock reacinha bate no peito pra dizer que não recebe “dinheiro público”, claramente se referindo à Lei Rouanet, mas embolsa uma baita grana de diversas prefeituras pelo país em suas turnês, digamos que eles precisam aprender o que é “dinheiro público”. Porque isso TAMBÉM é. E se eles têm direito de receber por seu trabalho (por mais escroto que seja), bom, QUALQUER um também tem, não importa a orientação política ou ideológica.
Mas o nome disso, senhoras e senhores, é HIPOCRISIA. Ou algo assim.