Entre Sam Raimi e o multiverso, quem perdeu foi a Wanda
Uma verdadeira bagunça, conforme o título sugere, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura tem realmente ótimos momentos – mas é na personagem central que peca e ainda mantém os maiores pecados do MCU
Por THIAGO CARDIM
Por mais que goste do personagem nos quadrinhos e simpatize demais com o Benedict Cumberbatch, digamos que eu não seja dos maiores apreciadores do primeiro filme do Doutor Estranho. No meu ranking pessoal de filmes do MCU, ele tá lá pra baixo, performando um tantinho melhor do que os dois primeiros filmes do Thor. Não é ruim, fato. Mas também não é nada UAU. É só NHÉ. Legalzim.
Justamente por isso, não é que eu estivesse lá MUITO do empolgado por uma continuação, com ou sem multiverso envolvido. Só que aí meteram duas palavrinhas mágicas neste feitiço aí: Sam Raimi. E então meu nível de excitação foi de fato lá em cima. Um dos meus diretores prediletos, responsável por dois dos meus filmes favoritos DA VIDA (sendo que apenas um deles é com o Homem-Aranha, bom ressaltar), com uma assinatura de estilo claríssima. Se tivesse a liberdade que um James Gunn ou Taika Waititi tiveram, olha… ia fazer estrago. Já tava amando.
Aí a Wanda pós WandaVision (minha segunda série favorita do MCU até o momento, atrás apenas do Gavião Arqueiro) entrou na conversa, veio o anúncio da estreia da America Chavez, e o negócio parecia promissor. Começaram a vazar os detalhes sobre a presença dos Illuminati e, pronto. Doutor Estranho no Multiverso da Loucura tinha definitivamente a minha atenção. Só vem.
E aí que veio. Mas veio sem vir muito. E aí que, olha, não é como se fosse de fato tão UAU assim. É mesmo melhor do que o primeiro. E tem Sam Raimi sendo Sam Raimi. Mas faltou coisa. E sobrou muita coisa. Pro bem e pro mal.
A assinatura de Raimi está em todo canto
Bom, isso é a mais pura verdade. Numa história em que o Doutor Estranho tem que ajudar uma jovem que tem o poder de viajar livremente pelos muitos universos paralelos enquanto é caçada por demônios, olha, tava claro que o Raimi ia fazer a festa. Doutor Estranho no Multiverso da Loucura não é um filme de terror, mas digamos que tem MUITOS elementos aí que remetem aos melhores momentos do gênero – com direito até a uma certa anti-heroína perseguindo os mocinhos da história de cabelos escorridos pela cara e com sangue pelo corpo no melhor estilão Carrie, a Estranha.
Tem muito do Raimi nos enquadramentos esquisitos – a cena vista de dentro de um relógio de pulso tem um quê de genial – e até numa quase breguice nas transições e fusões de imagens, propositalmente evocando o que há de mais retrô nos filmes de horror. Isso é lindo. Assim como é perceptível o seu DNA nos monstrengos babando com sangue nos olhos, quase gore, com os olhos sendo arrancados violentamente, o que deve dar uns bons sustos aqui e ali na molecadinha acostumada a uma Marvel quase asséptica em sua inocência. Tem até jumpscare, saca só.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura tem, aliás, uma ligeira sujeira que, se fosse potencializada, lhe faria muito bem. Sujeira no visual, sujeira até mesmo no humor (por mais que o cineasta consiga fazer umas piadinhas que são mais tipicamente suas do que daquele estilão Marvel). Mas digamos que Raimi foi até onde conseguiu com belas garras, dentes, tentáculos. Com um visual incrível entre dimensões geométricas e multicoloridas que dialoga com a mais pura lisergia de Steve Ditko, criador do herói nas HQs, em seus cultuados idos dos anos 1960. E com Bruce Campbell, seu grande amigo e ator fetiche, que obviamente tem uma pequena (e divertida) ponta mais do que garantida.
Deram um orçamento milionário pro menino se divertir (cifras que, vale lembrar, são muitíssimo mais infladas que aquelas que ele teve pra brincar com Peter Parker e que já eram um assombro se comparadas aos seus tempos de indie) e tá na cara que ele se divertiu um bocado. Isso é muito legal, claro. Só que não demora muito pro Raimi e pro espectador perceberem que, hey, hey, isso aqui é Marvel e aqui não é lugar de bagunça, meu filho. Ou seja, a tal da loucura do multiverso é bem menos louca do que se imaginaria…
Leia também > O misterioso Steve Ditko, cocriador do Doutor Estranho
Quando o multiverso está preso às correntes do universo expandido
Veja só, claro que é gostoso, ainda mais pra quem é leitor de gibis, ficar sacando os easter eggs escondidos aqui e ali, da menção ao Monte Wundagore do Alto Evolucionário à entidade cósmica de capuz na cabeça que claramente é o Tribunal Vivo. E sim, dá um quentinho no coração dar de cara com Patrick Stewart como uma variante do Professor Xavier inspirada na animação dos anos 1990 (isso tá longe de ser spoiler, já que os trailers mostram a parada descaradamente), assim como as OUTRAS aparições especiais, tanto na sequência envolvendo os Illuminati quanto em uma das duas cenas pós-créditos.
E olha que tem uma bela duma surpresa que fez todo mundo aplaudir na exibição do filme pra imprensa… e outra que fez com que apenas eu delirasse ao descobrir QUEM era o ator por trás da máscara.
Mas, no fim, comparando sem nenhuma vergonha, enquanto Homem-Aranha – Sem Volta Para Casa é um imenso fanservice gostoso, bem feitinho, ajeitadinho, do jeito que o diabo gosta, este segundo filme do Doutor Estranho parece se ancorar um tanto DEMAIS neste recurso. Com o multiverso, a gente já sabe, a Marvel tá aí liberadíssima pra trazer personagens de volta, trazer atores de volta, misturar versões, remixar, bagunçar, mil coisas. O grande ponto é medir. Equilibrar. Entender que PODER fazer não quer dizer necessariamente PRECISAR fazer. Brincar com os bonequinhos não significa necessariamente tirar todos os bonequinhos da caixa e espalhar pelo chão do quarto até não saber mais por onde começar a brincadeira.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura se perde na loucura das referências e o que teria potencial para ser, antes de qualquer coisa, uma ótima história do Mestre das Artes Místicas, acaba sendo uma história apenas OK do Mestre das Artes Místicas e que serve a um PROPÓSITO MAIOR. E isso é a coisa que mais me incomoda, já tem um bom tempo, no tal conceito de “universo expandido”.
“Mas eu não quero ver outra coisa, eu quero ver só este filme”, diz o aspirante a espectador meio fulo da vida com o homem da bilheteria vivido pelo humorista Ed Gama neste ótimo vídeo do canal Porta dos Fundos. “Não é assim que funciona não. O senhor está achando que ser fã de super-herói é bagunça?”, responde então o nerd indignado, depois de ensinar quantos filmes e séries o coitado do sujeito teria que ter assistido para ver o próximo filme. O caso é que a piada é engraçada porque é real. Para REALMENTE sacar qualé a do segundo filme de Stephen Strange, você PRECISA no mínimo ter assistido outro belo par de coisas. Ou vai definitivamente ficar boiando.
Este lance aí é um SACO. Universo expandido deveria ser uma diversão e não uma obrigação. Um filme deve existir por conta própria, com começo, meio e fim. Deve servir a si mesmo, com sua própria trama. E aí, se tiver umas coisinhas ali que o conectam com algo maior, só pra dar um tempero, beleza pura. É o caso dos dois Guardiões da Galáxia. É o caso de Thor – Ragnarok. É o caso dos filmes do Homem-Formiga. Você que nunca viu nada da Marvel, vai lá, assiste e boa. Você que já assistiu, vai sacar umas pegadinhas cá e acolá e tudo bem. Este não é o caso aqui. Tá bem longe, aliás. Doutor Estranho 2 não é um filme. É uma ponte. Uma conexão. É uma construção da próxima etapa do arco narrativo macro. Não tem vida própria.
E, pra completar, ainda REPETE um outro arco narrativo menor na maior cara de pau.
Leia também > Para entender a Feiticeira Escarlate
O fator Wanda Maximoff
Assim, não que isso ficasse lá muito do escondido nos materiais de divulgação mas, como a coisa meio que se desdobra logo lá pelos primeiros 30 minutos de trama, então consigo te dizer abertamente que a Feiticeira Escarlate é sim a antagonista do filme. Se dá pra chamá-la de “vilã” ou dizer que ela é a GRANDE antagonista, aí vou deixar você mesmo decidir depois de assistir à parada (até porque isso tá bem aberto à discussão).
O grande ponto aqui é que, mais até do que o próprio Doutor Estranho, Wanda é a dona da trama. A história, na real, gira mais em torno DELA do que próprio mago. O filme é praticamente todo de Elizabeth Olsen, que está incrível retornando ao papel depois de WandaVision.
Isso seria bem legal, seria uma notícia incrível, se ela não estivesse sendo forçada a reviver WandaVision. E aí a coisa caga de vez.
Doutor Estranho no Multiverso da Loucura traz mais uma vez a o estereótipo da mulher louca. Se Wanda dobra a realidade à sua vontade na série de TV porque está aprendendo a lidar com o luto da perda do amado Visão, controlando as mentes de uma cidade inteira, nesta película ela faz AINDA PIOR para tentar reencontrar os filhos que sequer existem. Chega a beirar a psicopatia.
Tentam jogar a culpa de tudo no livro das trevas conhecido como Darkhold mas, hum, não. Não cola. Desculpa aê. Não com ela. Não mais uma vez.
Uma personagem que vinha sendo tratada como uma Jean Grey de luxo nos filmes dos Vingadores e que teve direito a uma belíssima redenção em sua série solo no Disney+. E que retorna aos cinemas tendo que passar por MAIS UM arco de redenção. Outra vez. De novo. E de novo. Marvel, minha senhora, quantas vezes esta mulher vai ter que passar por este sofrimento?
Então… é só isso?
Olha, eu adorei a volta do Barão Mordo – embora, vejam só, tenham criado uma espécie de ódio entre ele e o Estranho que o primeiro filme sequer chega a construir, quando muito naquela cena pós-créditos que prometia torná-lo um vilão pra valer. E a introdução de America Chavez é muito da saborosa, vamos admitir, com Xochitl Gomez esbanjando carisma e prometendo fazer um belíssimo combo de Jovens Vingadores ao lado da Kate Bishop e da vindoura Miss Marvel.
Isso sem falar no meu favorito deste núcleo, ninguém menos do que o Wong. Agora o Mago Supremo da Terra, ele continua roubando as atenções sempre que pinta em cena (por favor, façam nem que seja um especialzinho sequer estrelado por ele pro Disney+, vai).
Mas nada disso é suficiente para dar o caldo que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura REALMENTE precisaria – e talvez coar aquilo que ele não precisaria em quase nada. Era mesmo o caso de exagerar pra valer em um lado… e evitar os exageros em outro. Mas parece que a Marvel inverteu a ordem. E, apesar de tudo, acabou desperdiçando o que um cara como Sam Raimi poderia entregar. E o que uma personagem como a Wanda poderia proporcionar nas mãos dele. Tudo porque precisava contar uma história maior. E não a história que o filme precisava.
Ficamos aí no zero a zero. Quando dava pra ganhar de goleada.