Ghost enfim estabelece o império do Papa pop e traidor
Com novo álbum, banda sueca liderada por Tobias Forge encontrou um jeito de experimentar sem deixar de se divertir e jamais perder a identidade e história dos personagens construída desde o primeiro disco
Por THIAGO CARDIM
Definitivamente, faz TOTAL sentido que a atual persona do vocalista do Ghost seja o Cardinal Copia. Tá bom, ainda que tenha se convertido oficialmente ao “cargo” de Papa Emeritus IV, vamos lá, por baixo da nova maquiagem e das vestes sagradas, ainda é o bom e velho Copia. E aí é que a coisa toda ganha um par de camadas interessantes.
Cardinal Copia é o único personagem que não era, de fato, um herdeiro direto da linhagem dos sagrados líderes satânicos, vindo do sangue do finado Papa Nihil. O Cardinal é, antes de tudo, um usurpador. Um canalha. Um manipulador. Um farsante. Alguém que desafiou a tradição para tomar o poder. Só a existência de uma figura como o Cardinal Copia poderia justificar o que o Ghost se tornou e se mostra, enquanto banda, no recém-lançado disco Impera.
Tal qual o próprio Cardinal, o Ghost que a gente ouve neste quinto disco de estúdio não deve satisfações a ninguém. Tal qual o próprio Cardinal, este é um Ghost que prova nitidamente pouco se importar com os “clássicos” – sejam eles aqueles pilares do rock cujo culto de seguidores fanáticos já declarou ODIAR a banda ou mesmo os próprios primórdios da banda. Tal qual o próprio Cardinal, este é um disco que não tem necessidade de se focar naquelas satanices que os tornaram famosos lá atrás.
Mas, ainda assim, você olha pra ele e escuta o que ele canta e, diabos, goste você ou não do grupo, é impossível não dizer que se trata do Ghost. A identidade tá lá, escancarada. Mas, ainda assim, tem algo a mais. Um temperinho mais exótico. E que faz TODA a diferença.
Impera é a prova de que, agora que encontrou o seu jeito de fazer música e solidificou a história por trás dela, o Ghost consegue fazer a mistura que bem entender, a experimentação que estiver com vontade, e ainda assim ela vai soar claramente como Ghost. É música com assinatura – conviva com isso.
Subvertendo a história e aprendendo com ela
Lá atrás, em Opus Eponymous (2010) e Infestissumam (2013), o Ghost explorava uma sonoridade retrô mais simples, que conversava com o occult rock dos anos 1970. Tematicamente, estava lá o questionamento ao cristianismo e a exaltação à figura de Lúcifer, Satanás, Belzebu… Você sacou o espírito (das trevas). Mas em 2015, com o lançamento de Meliora, Forge percebeu que podia ousar um pouco mais. Sem perder o peso mas versando essencialmente sobre uma vida sem uma entidade a se cultuar, não importa qual seja ela, ele usou o Papa Emeritus III, irmão mais novo da linhagem, para modernizar seu som. Vieram flertes com um rock mais anos 1980 aqui, uma dureza mais anos 1990 ali, uma baladinha descompromissada e acústica bem AOR acolá…
Quando o Cardinal Copia assumiu, ainda sem ser o novo Papa, ele se tornou o traidor que todos imaginavam. O maravilhoso Prequelle (2018), que pouco a pouco se tornou o favorito deste que vos escreve, falava essencialmente sobre a morte, sobre pragas de um ponto de vista quase medieval, mas o som de aspiração nitidamente mais pop e grudenta não dialogava com coisas como Blue Öyster Cult ou Pentagram e sim com uma OUTRA tradição, esta bem mais sueca – no caso, os muitos compositores e produtores pop que ajudaram a moldar tudo de mais relevante que tomou conta das rádios americanos nas últimas décadas (de Backstreet Boys a Britney Spears).
O Cardinal Copia é mesmo um traidor. Traiu o ROQUE e resolveu fazer música fácil de cantar, com refrão simples, olha isso, QUE ABSURDO. Pois agora devidamente alçado ao cargo de Papa, em Impera o personagem não deixou de lado – AINDA BEM! – as inspirações pop neste estudo a respeito da ascensão e queda dos impérios e da obscuridade, com metáforas que conversam obviamente com o passado, o futuro e, sim, com o nosso presente… Quando um império caiu, que outro vai surgir das suas cinzas? Será ele ainda mais sangrento, despótico, monstruoso?
Mais teatral, mais arena, mais galhofeiro
Impera é um Ghost querendo definitivamente ultrapassar os limites do conceito que o próprio Tobias Forge criou lá no começo dos anos 2000. Tem peso, pô, claro que tem – escute o riff demoníaco e rasgado de Hunter’s Moon, a canção composta para a trilha do filme Halloween Kills. Mas não dá, nem de longe, pra chamar este álbum de “heavy metal”. A concepção de gênero acaba sendo por demais limitadora para uma obra que abre, por exemplo, com toda a empolgação quase dançante de Kaisarion, que embora não se pareça com nada que o Ghost fez antes, ainda assim é Ghost até os ossos. Vai entender. Eu, pelo menos, entendi.
Detalhe que a canção, por mais que pareça quase doce e otimista, fala sobre Hipátia de Alexandria, considerada a primeira matemática da história e que acabou morta no século V justamente por ser uma “bruxa”, uma herege que cravava sua fé na ciência e não em um monte de deuses imaginários. Este tema, aliás, é bastante recorrente ao longo de toda a bolacha, como no caso da maravilhosa Watcher in The Sky, um verdadeiro ode ao racionalismo analítico e científico devidamente embalado por melodias complexas e uma modernidade sonora ao mesmo tempo pesada e cheia de energia.
O Ghost ainda se dá a liberdade de meter um tecladinho safado quase como protagonista em Spillways, uma picaretagem que deve fazer o metaleiro padrão se retorcer dentro das calças rasgadas mas que funciona lindamente, dando o tom ao longo de uma canção que não perde o aspecto sombrio mas é ao mesmo tempo delicinha de escutar e ficar repetindo sem parar ao longo do dia. Esta e o single Call Me Little Sunshine, de refrão igualmente sacana de tão pop, são referências diretas ao ocultista Aleister Crowley, aquele mesmo cuja imagem mais icônica está satirizada na capa do disco.
Rola até um espaço para a inesperada sonoridade cheia de grooves e batucadas de Twenties, aquela mesma que o idealizador do grupo afirmou ter sido inspirada no ritmo e nas melodias de um rapper brasileiro que ele teria ouvido em um especial de TV, há cerca de uma década, fazendo um show pra galera da sua quebrada. Ele não soube precisar exatamente se era funk, se era hip hop… Mas, honestamente, tanto faz. Porque tem peso, tem força, tem agressividade. Tá ali e, passando pelo filtro do Ghost, é diferente e ao mesmo tempo é a cara de um salafrário como o Cardinal Copia.
Perdão, o Papa Emeritus IV, desculpa aí.
Junte a este caldo sonoro uma balada totalmente radiofônica como Darkness at the Heart of My Love, com direito a dedinhos estalando pra você acompanhar a levada e tudo mais, e o hard rockão farofa Griftwood, e você já tem uma ideia do que esperar. Ou melhor: já dá pra ter uma ideia de que não dá pra esperar NADA. A ideia é fazer o que ele bem entende e tá tudo bem. Se você gostou, melhor dos mundos. Mas se não gostou, vai reclamar com o Papa. Neste caso, LITERALMENTE.
Impera pode soar exagerado, por vezes, mas claramente na intenção de reforçar ainda mais o lado teatral do Ghost. É uma coleção de canções que, todas, sem exceção, você fica ansioso pra ver como vão ficar ao vivo, cantadas e cantando para uma coleção cada vez maior de pessoas, assumindo um faceta crescente de rock de arena.
Pra mim, um bom resumo deste que desde já é um dos discaços do ano, pode ser este aqui – quem não gostava da banda desde o começo, vai continuar odiando. Quem deixou de curtir desde Prequelle, vai odiar ainda mais. Mas se você curte estes muitos flertes deste Cardinal sedutor e envolvente, um xavequeiro de carteirinha, com certeza vai se apaixonar. DE NOVO.
Tobias Forge deve, sem sombra de dúvidas, se divertir um bocado com esta coisa toda. Afinal, nunca antes este Papa foi tão pop. E o pop não poupa… Ah, você já sabe.