Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

A farofada hard rock da trilha sonora de Peacemaker

Série DC criada e dirigida por James Gunn tem a marca musical registrada dos trabalhos do cineasta, com faixas escolhidas a dedo para dar ainda mais profundidade à história e que se tornam verdadeiras personagens da trama

Por THIAGO CARDIM

Além dos integrantes da família espacial disfuncional da Marvel nos cinemas, incluindo aí um guaxinim com um trabuco e uma árvore falante, definitivamente a lista de protagonistas dos filmes dos Guardiões da Galáxia precisaria incluir a trilha sonora. Porque cada uma das canções tem um papel tão especial ao longo da história, como parte das fitas-cassete gravadas pela mãe do Senhor das Estrelas, que quando penso numa cena de um dos dois filmes, a música que toca nela imediatamente dá o play no toca-discos da minha cabeça.

O mesmo aconteceu quando o diretor, James Gunn, foi convidado a fazer filme de hominho na Distinta Concorrência e cometeu a deliciosa versão mais recente do Esquadrão Suicida. Afinal, apesar de lindíssima visualmente, aquela cena da Arlequina sentando a porrada nos soldados de Corto Maltese, por exemplo, não teria metade da força se não fosse a seleção da música “Just A Gigolo / I Ain’t Got Nobody”, de Louis Prima, pra tocar juntinho…

Portanto, quando descobrimos que Gunn daria outra chance ao personagem do Peacemaker (o nosso Pacificador), novamente vivido por John Cena, agora em uma série pro HBO Max, já ficou a expectativa sobre como seria a trilha sonora. Os maravilhosos trailers já davam a dica da farofada que tava a caminho, do humor rasgado, da violência quase cartunesca se levando menos a sério ainda que filme. E foi aí que veio AQUELA abertura. A mais pura expressão da farofa, cortesia dos veteranos noruegueses do Wig Wam.

O resultado é que a maravilhosa trilha que mistura glam rock e hair metal é grudenta, divertida, barulhenta e exagerada. Exatamente o que cada minuto da história de fazer rolar de rir TAMBÉM é. “Talvez esta seja a minha trilha-sonora favorita, combinando clássicos glam metal pouco conhecidos com obras-primas do sleazy rock contemporâneo”, afirmou James em comunicado oficial. “Sempre quis fazer uma trilha puramente rock and roll e finalmente tive a chance com todas as canções que as pessoas vão amar, quer elas estejam envergonhadas demais pra admitir ou não”.

Num papo com a Rolling Stone, o cineasta afirma que a canção da abertura, aliás, foi uma das primeiras nas quais pensou. “Comecei a selecionar as músicas do Peacemaker antes mesmo de começar a escrever a série. E a música do Wig Wam parecia ter a letra perfeita para nós, Do you wanna taste it? Do you really wanna taste it? (você quer experimentar, você realmente quer experimentar?)”. Depois, em uma mesa redonda com jornalistas, ele confessou que sua ideia era ter a trilha para uma apresentação de dança que fosse ao mesmo tempo ridícula mas que tivesse todo mundo com cara de sério. O objetivo? Evitar o botão “pular abertura”.

(não sei aí na casa de vocês, mas aqui pelo menos deu MUITO certo)

Para Gunn, a faixa e a abertura ainda são um sinal claro que eles estão dispostos a ir para qualquer lugar em termos narrativos. “Não temos limites criativos, de verdade. Não somos aquela série de TV comum da Marvel ou da DC. Acho que é mais a história de um sujeito triste que usa uma fantasia e vive em um mundo de super-heróis e tem que se comparar com eles – e vamos como ele sente inveja de cada um deles”.

E ainda prometeu que “a letra da música ainda tem ramificações que vamos perceber nos episódios futuros da série”.

A trilha contando e complementando a história

Ainda falando com os jornalistas, Gunn relevou que a escolha pelo hard rock de nomes como Faster Pussycat, Nashville Pussy e Firehouse foi proposital porque ajuda a construir a personalidade do Pacificador e a dualidade de relação com seu pai (Robert Patrick, maravilhoso), um homem notadamente preconceituoso e racista. “Ele gosta de hair metal porque isso conversa com tudo que o pai dele não é. É andrógino – imagina o Peacemaker voltando pra casa com um disco do Hanoi Rocks, os caras na capa maquiados e de meia-calça. Ou então um álbum do Mötley Crüe, com aquele símbolo satânico na frente. Isso tudo é uma afronta direta a quem o seu pai é”.

Para o James, esta é a prova de que o rock, e a música como um todo, foram uma influência bem mais positiva na vida do justiceiro de capacete do que o próprio pai, um supremacista branco escroto. E ainda afirma que as sementes pra entender isso estavam plantadas desde a sua participação anterior no novo Esquadrão Suicida. “Tem aquela cena dele dançando com a Caça-Ratos 2, que é basicamente o único momento em que ele é feliz de verdade ao longo do filme todo. Isso é parte de quem ele é. É uma satisfação secreta que ele traz consigo. Sua relação com a música acaba sendo algo muito íntimo”.

O mesmo pode ser dito do próprio John Cena – que, nesta mesma conversa com jornalistas, disse que não se sente lá muito à vontade dançando na frente dos outros. Mas acabou mostrando toda a sua malemolência ao dançar, só de cueca, ao som de “I Don’t Love You Anymore”, dos Quireboys. A sequência, que desemboca numa surreal luta com uma das estranhas criaturas às quais somos apresentados na série, foi rodada no PRIMEIRO dia de Cena no set de filmagem.

“Eu penso nisso como sendo uma expressão dele sendo feliz ou encontrando um pouco de realização ou significado na vida. E por isso pode estar até meio desafinado”, opina o ator. “Isso mostra um lado muito humano do Peacemaker e agradeço que o James tenha tentado me colocar neste momento pouco confortável justamente porque não precisava ser nada além do que de fato é. A liberdade de se sentir realizado”.

Como James Gunn costura as músicas à história

Eu tive a chance de sentar pra conversar pessoalmente com James Gunn quando ele esteve no Brasil para divulgar Guardiões da Galáxia – Vol. 2, durante a CCXP. Muito simpático, ele me disse que participa ativa e diretamente do processo de seleção das faixas e explica que é tudo muito orgânico. “Começa com a seleção de um monte de músicas da época que eu quero abordar, uma lista de centenas de músicas dentro deste recorte. Aí, eu faço um segundo filtro apenas com as canções que eu amo, que acho que funcionariam bastante no filme”.

E aí, então, ele vai lá e escreve o roteiro pra ver o que se encaixa de fato. “Algumas canções eu já penso que cabem como uma luva aqui ou ali na história, mas às vezes não tem nada que eu goste e aí tenho que voltar pra internet…”.

Ah, é, importante ressaltar uma parada aqui: James Gunn é louco por música (“Sou um fanático por música. Obsessivo. Compulsivo. Eu provavelmente sei mais sobre música do que sobre cinema”) mas não é Quentin Tarantino. E enquanto o cineasta de Cães de Aluguel constrói a identidade musical de suas obras sentado no meio de sua imensa coleção de discos, ouvindo um por um, a parada do diretor de Guardiões da Galáxia é digital. “Eu baixo uma faixa da internet e a escuto sem parar durante muito tempo. E eu baixo bastante e tenho milhares de músicas na minha coleção”.

Mas tanto Tarantino quanto Gunn têm uma coisa em comum: as músicas selecionadas não são pensadas como composições de um bom disco de trilha sonora, mas sim como elementos que ajudam a contar uma história. “No primeiro filme dos Guardiões, tivemos um momento mágico, porque as músicas funcionaram tanto pra contar a trama quanto como uma trilha sonora de verdade. (…) Meu principal trabalho é pensar no filme, é pensar nas canções que funcionariam melhor naquele momento, naquela cena, emocionalmente falando”.

Aproveitando…

James Gunn, claro, criou a playlist oficial da trilha do Peacemaker lá no Spotify, que ele vai atualizando a cada episódio justamente pra não perder o aspecto de surpresa da coisa toda.

Destaque até o momento para a versão selvagem e hard rock de “Pumped Up Kicks”, do Foster the People, que tem uma piada a respeito em um dos episódios. A releitura, feita exclusivamente pra série, é cortesia do compositor John Murphy – responsável pela trilha incidental – com vocais de um certo Ralph Saenz.

Quem não sacou, só pela voz, de quem se trata, a gente aqui explica… mas possivelmente só quem é do rolê do hard rock vai identificar. Ralph é o nome verdadeiro de ninguém menos do que Michael Starr, o vocalista da banda satírica Steel Panther.

Pra escutar esta e as outras canções, dá o play na listinha abaixo e deixe o seu dia um pouco mais feliz.