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Finalmente, chegou a hora de voltar pra Terapia

Elogiada e premiada HQ do trio Rob Gordon, Marina Kurcis e Mario Cau enfim ganha o seu aguardado volume 2 em versão impressa, a ser devidamente financiado via Catarse, justamente no aniversário de uma década da história

Por THIAGO CARDIM

Em 2011, uma HQ publicada online assim, de maneira despretensiosa, mas com muito carinho por parte da sua trinca de autores, começou a formar uma base de fãs de maneira absolutamente natural, orgânica, sem o apoio de uma editora gigantesca, sem grandes grupos de comunicação por trás, nada disso. Aí, antes mesmo do financiamento coletivo ser tudo isso que é hoje, esta plataforma que garante a independência de um monte de projetos incríveis, eles resolveram meter as caras pra levar aquilo pro impresso. Deu certo. O primeiro encadernado saiu, vieram as críticas, os prêmios… E veio também o hiato. Diabos, e o volume 2?

Durante o Catarse do volume 1 e ainda durante mais um tempo depois, a HQ ficou mesmo em silêncio, muito porque o próprio Mario não conseguia mais produzir enquanto cuidava dos envios das recompensas do projeto, enquanto equilibrava os pratinhos de OUTROS projetos (temos que pagar as contas, afinal). “Retomamos a HQ, publicada online no Petisco (um pioneiro site de webcomics). Só que a vida acontece, né. A HQ era semanal, se tornou quinzenal e entre os capítulos havia mais tempo do que de costume. A verdade é que conforme a Terapia continuava e crescia, nós três crescemos também, e nossos trabalhos tomavam cada vez mais tempo”.


A produção continuou do jeito que eles conseguiram, sendo concluída em 2018. No fim, o intervalo entre concluir a HQ online e o NOVO projeto do Catarse, agora pro Volume 2, foi muito maior do que todo mundo, autores e leitores, gostariam. Mas enfim aconteceu. “Em todo evento que eu participo sempre tem leitores pedindo o Volume 2. Eu sempre respondia com honestidade e também com esperança, mas sempre foi meio complicado, porque a resposta simplificada sempre era ‘não sei, depende de muita coisa’. Eu mesmo queria o livro publicado há tempos, mas tinha mais do que a vontade dos autores em jogo”. 

A história por trás da história

Em termos práticos, Terapia narra a história de um jovem de 20 e poucos anos que leva uma vida aparentemente comum. Porém, ele não apenas não se sente feliz como também não sabe o motivo dessa angústia que carrega dentro de si. Mesmo cursando faculdade, com amigos e uma namorada, sente-se só e deslocado, expressando o que sente através de velhas canções de blues, de nomes lendários como Robert Johnson, Muddy Waters e Skip James. Além disso, ele passa a visitar um terapeuta, dando início a uma jornada de autoconhecimento, numa trama que mescla conceitos clássicos da psicologia com a história de um dos mais americanos dos gêneros musicais.

Mas, por trás de todo isso, não apenas Terapia, mas o site Petisco como um todo, foi uma experiência inovadora de publicação de quadrinhos na web. “Lembre que começamos o portal, com séries semanais e várias inéditas, em 2011, quando a internet era um tanto diferente. Assim como o Quarto Mundo antes do Petisco foi uma experiência especial de HQ independente em grande escala, o Petisco foi um dos primeiros portais de webcomics no Brasil”, relembra Mario.

A jornada do Volume 1, no entanto, foi bem mais complicada do que muitos leitores sequer imaginam. Lá pro final da campanha do financiamento coletivo, eles foram procurados por Daniel Lameira, grande editor, na época trabalhando na Novo Século, dizendo que gostava muito de Terapia e queria publicar. Como naquele momento a campanha já tinha passado da meta, o trio precisou combinar direitinho como seria feito, porque mesmo sendo publicados por uma editora, eles tinham cerca de 700 livros pra mandar pros apoiadores. “O Lameira foi ótimo, muito atencioso e interessado no projeto. Reuniões foram feitas, contrato assinado e o que seguiu foi uma experiência que, sinceramente, pra mim foi muito aquém do que eu acho correto do ponto de vista editorial”.

Pouco depois do livro sair, o Daniel saiu da editora (Nota do Editor: Depois de uma passagem pela Intrínseca, ele então iniciou uma carreira brilhante na Aleph e fundou a maravilhosa Antofágica. Mas isso é outra história). Com a saída dele, Terapia ficou no limbo. Sem eventos de promoção, sem menções nas redes. “Conseguimos autografar na Bienal, em 2014, por exemplo, só porque insistimos muito e tivemos que bancar nossa própria viagem”, revela ele.

Ao longo dos anos, o ciclo se repetiu algumas vezes: limbo, tentativa de contato, descoberta da nova editora, promessas de que iam retomar o projeto, divulgar, crescer… e limbo de novo. “Eu fiquei cada vez mais frustrado com a experiência, que culminou no lançamento do selo Geektopia da editora, focado em quadrinhos e com a promessa de que Terapia seria o carro-chefe. Só que nunca foi mencionado pela editora, ou pelo selo, nos anos seguintes. Era muito bizarro: a editora tinha uma HQ com público enorme, potencial imenso para eventos (não só de quadrinhos!), enfim… E continuava no limbo”. 

Eles propuseram a dissolução do contrato, que inclusive tinha um pressuposto bizarro: a editora tinha prioridade na publicação do Volume 2. Quer dizer, quando eles decidissem mesmo fazer o livro, a editora poderia dizer se queria e, só no caso de dizer NÃO, eles poderiam levar o gibi pra outro lugar. “Esperar o contrato acabar para não renovar ia demorar muito. E tudo era complicado, uma coisa trancava a outra. E enquanto a editora não movia um dedo pra promover e vender o livro, eu seguia vendendo muito bem ele nos eventos e sentindo como o público queria mais”.

Em meados de 2019, veio o ultimato e finalmente eles estavam livres para fazer o que quisessem tanto com o volume 1 quanto com o volume 2. “Agora, imagine. Você sabe como publicar e vender quadrinhos no Brasil é… Um livro colorido de capa dura, sendo a parte 2 de 2. Que editoria ia querer? Eu imaginava que uma nova editora ia precisar publicar o Vol.2 igual ao Vol.1. Mas também relançar o Vol.1, que poderia agora ser capa comum. Só que isso pediria o Vol.2 também em capa comum. E fazer sozinho, do bolso, era inviável. Catarse e independente era a melhor solução, mas bastante trabalhosa”.

Em 2021, com Terapia fazendo 10 anos de aniversário, não dava mais pra esperar. “Terapia Vol.2 vai acabar saindo em 2022, mas pelo menos vai acontecer (isso se a campanha bater a meta, hehe). Sobre relançar o Volume 1, por enquanto não há planos, justamente por ser muito caro e complicado. Se alguma editora se interessar em republicar a HQ toda, nós estamos disponíveis pra conversar”, afirma Mario, mas com uma ressalva importante. “Eu só topo se for pra trabalhar com editores sérios, haha”.

Relendo Terapia HOJE

Mario afirma que tem um carinho enorme por Terapia, além de um orgulho imenso do que eles criaram. “Artisticamente, eu acho que Terapia é meu melhor trabalho até hoje. Eu peguei tudo que já vinha sendo feito no meu quadrinho e elevei a potências maiores: meu desenho evoluiu demais e eu tinha liberdade para pirar em composição de páginas, narrativa visual, cores, traços, metáforas…”, explica. Para ele, o roteiro sempre foi muito focado nos diálogos e no funcionamento da terapia e da relação entre os protagonistas, e tirando algumas ocasiões em que o roteiro propunha uma coisa específica para a arte, era basicamente o próprio desenhista que tomava conta disso.

“Também gosto de lembrar com carinho que, lá pelo capítulo 6, muita coisa mudou em nossas vidas e eu estava aprendendo cada vez mais sobre edição e gerenciamento de projetos, e comecei a colaborar ativamente nos roteiros”. Antes disso, Mario dava uma ou outra ideia, geralmente pensando só na arte. Mas quando começou a participar das rodadas de e-mails e reuniões para definir o roteiro, percebeu que tinha SIM algo de bom pra oferecer na escrita. “Comecei a sugerir um direcionamento dos capítulos em questões específicas a serem resolvidas e um rumo para o final da história no capítulo 14. Se eu sempre tinha sido um editor dos meus próprios trabalhos independentes, foi aqui que eu realmente me senti apto a editar e escrever algo maior do que HQs curtas da série Pieces”.

E se saúde mental já era uma grande questão antes, com o mundo se tornando cada vez mais complicado de navegar, especialmente para quem é mais sensível, ou não se encaixa nos padrõezinhos – imagine agora, portanto, no contexto pandêmico e da ascensão conservadora. “Acho que Terapia pega uma coisa muito universal e atemporal e a explora de uma forma honesta e visualmente convidativa. A coisa de não se sentir bem, estar perdido, deprimido e não saber bem o motivo, isso acontece com muita gente”. E não importa a época. A história não tem quase nada de tecnologia, então ela poderia acontecer tanto nos anos 1980 quanto hoje em dia.

O legado de Terapia

Mario notadamente vê, ainda hoje, o quanto a HQ foi e ainda é importante para as pessoas. “Eu recebo constantemente mensagens em diversos canais sobre isso, e fico muito, muito feliz. Terapia é uma HQ muito especial e tocou muita gente de um jeito poderoso. Imagina só, uma webcomic que acabou há anos e foi publicada num site que nem existe mais, teve só um livro publicado anos atrás, e ainda mexe com tanta gente!”.

Estamos falando de um gibi que passeia por alguns gêneros e explora ao máximo o mundo interior dos personagens através da arte – numa pegada poética e que ressoa muito com os leitores, especialmente pessoas que normalmente não leem HQ. “Muita gente que hoje lê HQs e vive a cena teve um primeiro contato com Terapia, e isso é incrível”.

O futuro de Terapia

Você aí, leitor fiel, deve estar se perguntando a mesma coisa que EU perguntei pro Mario – existe qualquer chance de termos mais material inédito de Terapia? Alguma sobra ou, talvez, uma retomada de algum ponto daqui pra frente? “Acredito que não”, diz ele. “Nunca diga nunca, mas é bem improvável. Nós costuramos a trama e fechamos a HQ do jeito que queríamos. Eu gosto demais do que produzimos, e acho que a história foi contada”.

Mas… Pois é, sempre existe um MAS.

“Só que esse tipo de história é muito propícia para capítulos extra”, confessa o quadrinista. Ele afirma que poderiam continuar criando capítulos novos, que fariam parte do cânone e entrariam entre os capítulos já existentes. “Mas não sei se isso seria bom. Apesar de poder expandir o mundo daqueles personagens, também podemos acabar abusando da fórmula, expandindo demais e perdendo profundidade e também aquele fator bacana de identificação com os leitores”.

Ele faz questão de recordar um ponto que talvez nem todo mundo saiba – existe um “capítulo secreto” de Terapia. Em 2012, antes do Volume 1, eles fizeram em conjunto com os autores do Petisco uma antologia chamada “Petisco apresenta Vol.1”, com HQs novas das séries do site. “A HQ de Terapia foca na menina de olhos azuis, que o garoto conhece no capítulo 4. É uma HQ muito bonita e sensível, mas que pouca gente leu por estar nesse livro. Tem a possibilidade deste capítulo entrar no Volume 2, mas só se conseguirmos uma meta estendida no Catarse”. OLHA SÓ, HEIN? 

O sonho do Mario, na moral? Uma editora que pudesse levar o material para longe, publicar fora do Brasil, em uma edição única e bem caprichada, e que pudesse chegar em mais pessoas fora da bolha do quadrinho. “Acho que essa HQ merece e tem potencial pra isso, mas sozinho eu não dou conta”.

Quando ele diz “sozinho”, bom, é porque é preciso lembrar que Rob e Marina, seus parceiros, não são da cena dos quadrinhos, continuam super ocupados e tendo muito sucesso em suas áreas. Tanto é que, embora o trio esteja sempre em contato, acabaram nunca mais fazendo nada juntos. “Eu e o Rob sempre falamos sobre fazermos um projeto juntos, e eu adoraria, mas nunca chegou a dar certo. Temos ideias, mas não temos tempo, o universo ainda não conspirou pra isso, hehe”.