O verdadeiro significado da canção Bella Ciao
Em tempos de combate à ascensão fascista, é fundamental relembrar as raízes da música – que é muito, mas MUITO mais, do que “aquela canção que toca em La Casa de Papel”
Por THIAGO CARDIM
Estamos em 2021. Se a gente fala em Bella Ciao, a música, muito provavelmente a sua associação imediata é à canção que tocou loucamente ao longo da série La Casa De Papel, aquela mesma que até a loira do banheiro vinha te perguntar se você já tinha visto. A faixa toca em diversos momentos-chave da trama, aquela coisa, a começar pelo flashback no qual o Berlim (Pedro Alonso) pede ao Professor (Álvaro Morte) que prometa que eles não serão presos caso role alguma complicação durante o tal assalto planejado.
Mas deixa a gente te contar aqui que, NÃO, Bella Ciao não é uma canção originalmente composta pra série, assim como ela também não é uma cantoria nascida num estádio de futebol. Tamos falando, isso sim, de uma antiga canção de protesto italiana, entoada como hino contra os fascistas durante a Segunda Guerra Mundial e que virou símbolo de resistência e liberdade.
Tá bom, você pode estar aí, de repente, com as versões eletrônicas e bombantes do Steve Aoki, do Hardwell, do Alok na sua cabeça, pode ser difícil de acreditar, a gente entende. Mas se liga no que é o mais próximo da versão “original”.
Um pouco de história
Olha só, origens para o surgimento da faixa existem algumas. Há quem diga que se trata de uma melodia que adapta Oi Oi di Koilen, do acordeonista ucraniano Mishka Ziganoff, uma antiga canção klezmer — que, no caso, é uma verdadeira tradição musical dos chamados judeus asquenazes/asquenazim, da Europa Central e Oriental.
A música teria sido levada pra Itália por um imigrante que estava nos EUA e acabou ganhando sua versão por lá. Mas outros historiadores defendem que Bella Ciao teria surgido muito antes, no século 19, isso sim, como inspiração das canções populares das mondinas, trabalhadoras dos campos de arroz do vale do Rio Pó, ao norte da Itália. Bastaria ouvir Picchia alla porticella, Fior di tomba, Sciur padrun da li beli braghi bianchi ou Se otto ore vi sembran poche pra sacar a referência.
Mas eis que, entre 1943 e 1945, em plena guerra que assolou território italiano, uma versão da música cujo autor da letra é desconhecido tornou-se uma espécie de hino contra os fascistas que tomaram conta do país, liderados pelo ditador Benito Mussolini e apoiados pelos nazistas de Hitler.
A chamada Resistência Italiana, também chamada partigiana, cantava a faixa sobre um homem que acordou e, certo dia, encontrou um invasor em casa. E sentindo a aproximação da morte, ele pede aos colegas partigianos que o levem embora — e, enquanto se despede de sua bela, pede que seja enterrado nas montanhas, sob a sombra de uma linda flor. “Todas as pessoas que passarão / Eles vão me dizer: que linda flor / E esta é a flor do partigiano / Morreu pela liberdade”.
Bella Ciao foi ainda retomada nos anos 60, também na Itália, durante as manifestações de trabalhadores e estudantes — e, anos mais tarde, foi usada por uma série de grupos que se opunham ao governo de Silvio Berlusconi. Mas a faixa não se limitou ao país da bota e foi entoada também durantes protestos no Chile, em Hong Kong, na Grécia, na Turquia… A lista só aumenta, tanto quanto aumenta a lista de músicos que já a regravaram ao longo dos anos, nos mais diferentes ritmos: Manu Chao, Yves Montand, a diva argentina Mercedes Sosa e, claaaaaro, uma porrada de bandas punk ao redor do mundo. Teve os italianos do Bassotti e do Talco, os escoceses do Dog Faced Hermans, os húngaros do Aurora, os iugoslavos do Goblini, os espanhóis do Boikot, os bielo-russos do Dzieciuki…
Exemplo não vai faltar. Aqui no Gibizilla, a gente curte MUITO esta versão aqui, tipicamente brasileira, um skapunk dos paulistanos do Skamoondongos.
Outra versão BEM boa…
No final deste mês de outubro, guitarrista DJ Ashba (Sixx:A.M., ex-Guns N’ Roses) promete soltar nas redes a sua própria versão da canção, inspirada justamente na sua fixação pela série espanhola da Netflix. Mas a gente sugere o play na versão folk acústica abaixo, no vozeirão rouco e grosso (curtido na bebida e no cigarro) do cantor / ator Tom Waits, que ele gravou pro mais novo disco solo de um de seus mais antigos parças, o guitarrista Marc Ribot, Goodbye Beautiful/Songs of Resistance 1942–2018. Além da interpretação cheia de profundo sentimento do cantor trazer de volta o significado original da faixa, impossível não perceber neste clipe dirigido por Jem Cohen que infelizmente existe um triste paralelo entre o mundo daquela época e aquele no qual vivemos hoje.
Ribot (instrumentista de larga experiência, que já gravou com nomes como Elton John, Madeleine Peyroux, Marianne Faithfull, Diana Krall, Mike Patton e até Caetano Veloso) foi um dos principais responsáveis por ajudar a definir a sonoridade de Rain Dogs (1985), disco de Waits no qual trabalharam juntos pela primeira vez e que a gente pode tentar definir como um blues sujo, urbano e bastante melancólico sobre as ruas e becos de Nova York — e quem os habita longe dos prédios cheios de luzes e janelas envidraçadas.
Waits, que não lança nada novo desde 2011, se junta a nomes como Steve Earle (cantor e ativista político), Meshell Ndegeocello (rapper e baixista alemã), Justin Vivian Bond (cantora e pintora engajada na luta pelos direitos de homens e mulheres trans) e Fay Victor (intérprete de jazz/blues) numa bolacha que compila uma porrada de músicas de protesto, novas e ancestrais. O tracklist vai de Srinivas, que Ribot escreveu sobre o assassinato de dois indianos, Srinivas Kuchibhotla e Alok Madasani, no Kansas (“Madman pulled the trigger; Donald Trump loaded the gun”, diz a letra), até We’ll Never Turn Back, faixa-título do disco da cantora soul/gospel Mavis Staples dedicado ao Movimento dos Direitos Civis.
Importante lembrar ainda que Goodbye Beautiful é o SEGUNDO álbum com canções de protesto que o Ribot colocou na rua recentemente. O outro, YRU Still Here?, é uma cacetada de inspiração punk que serve como contraparte ideal da calmaria sonora do lançamento mais recente, cortesia do trio Ceramic Dog, do qual Ribot faz parte com Shahzad Ismaily (baixista) e Ches Smith (bateria). Com títulos como Muslim Jewish Resistance e Fuck la Migra (que poderia tranquilamente batizar uma canção do Brujeria), é desde já imperdível de se ouvir TAMBÉM. Nossa sugestão? Escuta os dois, um na sequência do outro. Vai valer a pena.
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Jamanta
Muito bom conhecer a história dessa música. E essa versão do Marc Ribott ficou muito boa.