Karen Berger – a revolução nas HQs tem nome de mulher
A gente retoma aqui um papo EXCLUSIVO que o MinasNerds teve com a mãe do selo Vertigo, falando de passado, presente e futuro
Por GABRIELA FRANCO
(publicado originalmente no site Minas Nerds)
O início dos anos 1990 ficou conhecido por marcar uma drástica mudança na estética das histórias em quadrinhos, após o lançamento de obras como Watchmen (Alan Moore) e Batman: O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller. O público, aquele leitor tradicional das HQs que havia crescido com elas, envelheceu e as histórias acabaram por refletir um universo mais sombrio e violento, bem mais adulto, sério e questionador.
O sucesso desses e de outros quadrinhos sob a responsabilidade de escritores que não tinham feito fama com super-heróis tradicionais e apostava no fantástico e sobrenatural como Alan Moore com Monstro do Pântano, por exemplo, foi finalmente reconhecido através da formação de uma nova marca, braço da editora DC Comics, criado e gerido por uma mulher. Essa marca foi durante muito tempo uma das mais conhecidas do mundo dos quadrinhos e atendia pelo nome de VERTIGO. E a mulher que, apesar de todo preconceito e resistência do meio, a transformou na potência que entrou para a história dos gibis, se chama Karen Berger.
Os primeiros títulos do selo foram John Constantine: Hellblazer (1988 – 1991), de Jamie Delano, e Sandman (1989 – 1996), de Neil Gaiman, que se tornou um dos carros-chefes do novo selo, seguindo uma das tendências dessa época que foi a constante troca de equipes narrativas, trazendo histórias fechadas, desenhadas por artistas diferentes a cada arco.
O sucesso de Sandman como uma série de ficção sem personagens previamente conhecidos indicou à DC qual seria o caminho a seguir após o término do contrato com Gaiman. Isso pode ser notado nas séries: The Invisibles, de Grant Morrison (1994 – 2000), Preacher, de Garth Ennis e Steve Dillon (1995-2000) e Transmetropolitan, de Warren Ellis e Darick Robertson (1997-2002).
A Vertigo misturou material da DC, como Monstro do Pântano e Homem-Animal, com séries fechadas de propriedade do criador até 2010, quando anunciou que se tornaria exclusiva para trabalhos que garantissem direitos autorais aos seus artistas e escritores. Foram editadas por lá HQs históricas como Astro City, Patrulha do Destino, 100 Balas, Lúcifer (que inclusive ganhou uma série de TV), V de Vingança (que também virou filme), Fábulas, Y: O Último Homem, entre muitas outras.
Não à toa, mesmo após duas décadas, Karen ainda é referenciada como uma das maiores editoras do mercado de quadrinhos no mundo todo e entrevistá-la é um privilégio concedido a poucos, já que sua agenda ainda é muito atribulada. O MinasNerds bateu um papo com uma das mulheres mais proeminentes do mercado de HQs – e a gente aqui no Gibizilla reproduz a íntegra desta conversa histórica.
Costumamos dizer que o surgimento da Vertigo é resultado de um contexto onde os leitores de HQ haviam se tornado adultos e buscavam histórias mais profundas e violentas. É verdade? Qual foi o contexto em que a Vertigo surgiu?
Karen Berger: É mais ou menos sabido que a escrita e influência de Alan Moore foram responsáveis pelo surgimento da Vertigo. Seu trabalho em O Monstro do Pântano, V de Vingança e Watchmen mudou a cara dos quadrinhos e, mais importante, provou que os quadrinhos poderiam ser apreciados como uma forma de arte tão moderna quanto a literatura. No final dos anos 80, comecei a trabalhar com Neil Gaiman em Sandman, Grant Morrison em Homem-Animal, Jamie Delano em Hellblazer e Peter Milligan em Shade, O Homem-Mutável, cada um deles incrível e distinto, cujo trabalho se tornaria a base do lançamento do selo Vertigo.
Eu fundei o selo porque os leitores realmente responderam a este material e quiseram ler histórias mais inteligentes, provocativas. Essa abordagem era muito nova para os quadrinhos tradicionais e, inicialmente, apelava para o leitor de super-heróis que tinha crescido e queria ler histórias mais complexas e psicológicas, mas buscava quadrinhos com uma abordagem não tradicional. Um dos meus principais objetivos com a Vertigo foi alcançar leitores não habituais de quadrinhos como eu, incluindo mais mulheres. Os leitores gostaram das histórias mais profundas, mas a violência nunca era a característica principal do selo. Houve violência em algumas histórias, e definitivamente sexo, mas eu gostaria de pensar que nunca foram gratuitos, que faziam parte do contexto da história.
Também é sabido que os contratos entre a Vertigo e os artistas eram diferentes do que costumava ser praticado no mercado. Por exemplo, escritores passaram a ser as grandes estrelas do selo. Como isso funcionava?
A Vertigo foi criada em uma época que os criadores e seus trabalhos estavam transformando a indústria de quadrinhos. Um dos meus objetivos quando comecei o selo era garantir que os direitos e compensações fossem justos. Eu realmente acredito que, para a época, os contratos eram justos principalmente vindos de uma grande corporação que só havia trabalhado com contratos que previam pagamentos posteriores às produções.
E como você foi parar no mercado editorial? Depoimentos de colegas da área atestam que, quando você começou, não conhecia muito do universo dos quadrinhos. É verdade?
Sim! Eu tinha lido alguns quadrinhos do Archie quando criança, Riquinho e algumas HQ de romance, enquanto meus irmãos mais velhos liam Mad. Eu não sabia nada sobre quadrinhos quando eu fui parar na DC, logo após terminar a faculdade. Meu grande amigo J.M. DeMatteis estava escrevendo a Casa do Mistério para o Paul Levitz e mencionou que eu procurava emprego como assistente. Meu primeiro emprego foi como assistente administrativa, lidando com contas a pagar, pois Paul não queria mesmo contratar um fã de quadrinhos para o emprego. Eu tinha estudos de Literatura Inglesa e História da Arte em meu currículo, o que realmente me foi muito útil, então, rapidamente me apaixonei pelas narrativas das histórias em quadrinhos. Após alguns anos, eu me tornei editora em tempo integral e nunca mais olhei para trás!
Mesmo antes da criação da Vertigo, você lidava com histórias que não envolviam super- heróis, ao menos não na forma mais tradicional. Qual é a sua opinião sobre esse domínio que os super-heróis exercem no mercado norte-americano?
Super-heróis estão muito relacionados aos adolescentes norte-americanos. Nunca fizeram nada por mim! Mas esses personagens exercem forte influência na vida de milhares de pessoas que cresceram lendo essas histórias e para muitas que continuaram a ler depois de adultas. A popularidade dos filmes também aumentou a visibilidade deles, o que é algo incrível. Mas, pessoalmente, eu acredito que a influência da Vertigo contribuiu para que se criasse um grande mercado de quadrinhos independentes dos super-heróis e que hoje representa uma parte significativa da indústria.
Tendo trabalhado com diversos artistas, notou alguma diferença nos processos criativos entre americanos e ingleses?
Eu não acho que o processo criativo seja muito diferente, mas culturalmente falando, americanos e ingleses não são tão parecidos, principalmente porque desenham a partir de influências diferentes. Quando eu comecei a trabalhar com os autores britânicos, eu sentia que seu olhar sobre o mundo era diferente e aquilo me agradou. Principalmente, porque eu queria chacoalhar as coisas e tirar os quadrinhos de sua zona de conforto.
Quais são seus títulos favoritos da Vertigo e por quê?
Eu editei tantos títulos e publiquei ainda mais… Então essa seria uma pergunta difícil de se responder. Existem vários que eu amo, mas se eu tivesse que escolher, seria Monstro do Pântano, por ter trabalhado com Alan Moore, Steve Bissette, John Totleben e Rick Veitch. Foi uma época muito especial pra mim e certamente para os quadrinhos também.
E sobre a explosão dos títulos com heroínas? Há algum que você prefira?
Acho incrível que tantas mulheres nos EUA estejam escrevendo e desenhando quadrinhos, afinal hoje existem muito mais títulos que dialogam com as mulheres. Alguns dos meus favoritos, independentemente do gênero, são os produzidos por G.Willow Wilson, Kelly Sue DeConnick e Marjorie Liu— cada uma delas possui uma voz tão forte e original, além de escreverem maravilhosamente.
Após sair da DC, você teve uma breve passage pela Image, que muitos leitores chamam de “Vertigo dos anos 2000”. Como foi trabalhar lá? O respeito aos autores independentes seguia a mesma lógica que você empregava na Vertigo?
A Image tem um grande respeito por seus criadores e seus trabalhos. Minha experiência lá foi bem positiva.
(Neste texto aqui do JUDÃO.com.br, o Thiago falou sobre o retorno dela em sua primeira publicação da Image)
Talvez você não possa nos fornecer muitos detalhes sobre seu selo Berger Books, mas será que poderia nos informar quando será lançado?
É muito cedo para dar detalhes sobre o Berger Books. Eu ando extremamente ocupada tentando reunir os títulos e mais ocupada ainda analisando novas propostas. Eu posso dizer que estou muito animada em trabalhar na Dark Horse, que tem uma excelente reputação como uma editora que publica grandes títulos independentes e com trabalhos de alta qualidade. É o lugar perfeito para mim – realmente não me imaginaria em nenhum outro lugar. Tudo que posso dizer é que os títulos envolvem uma grande variedade de artistas, de todos os gêneros. Escritos e desenhados por uma seleção incrível de quadrinistas, tanto novos quanto mais experientes. Eu garanto que suas histórias irão certamente lhe agradar. Fiquem ligados para maiores detalhes nos próximos meses!
(Esta entrevista foi conduzida ANTES da estreia do selo, que agora já está caminhando firme e forte. Dá uma olhada aqui para ver o que anda saindo por esta nova iniciativa)
Além dos EUA, que outros países tiveram uma boa performance de vendas com o selo da Vertigo?
Quando eu estava lá, França, Itália, Espanha e Brasil eram nossos mercados internacionais mais rentáveis.
Você conhece alguma quadrinista brasileira? Você tem sido uma grande inspiração para todas nós, tanto profissionais como leitoras de quadrinhos no Brasil. Gostaria de deixar alguma mensagem sobre os desafios de ser uma mulher nesse mercado?
Eu não conheço as artistas brasileiras, mas adoraria ser apresentadas a elas. Há décadas que as mulheres lutam para ocupar espaço no mercado americano e isso tem aumentado ao longo dos anos, o que garante uma maior diversidade de narrativas e de leitores também. Eu trabalho com quadrinhos há 30 anos e é maravilhoso ver que as coisas estão mudando no mercado. Uma história em quadrinhos é uma mídia muito especial, tanto para quem produz como para quem consome. O mais importante é que tenhamos respeito uns pelos outros, independente de quem seja e de onde venha.