Uma nova chance para Zamor
Conversamos com a dupla Mozart Couto e Franco de Rosa a respeito do retorno das aventuras clássicas do personagem, que agora tem espaço para conquistar uma nova geração de leitores
Por THIAGO CARDIM
Lá no começo dos anos 1980, o Brasil teve um herói que muito leitor da época amava, mas que alguns nem sequer se lembram que era, de fato, uma criação nacional. Um colega do alto de seus 50 e poucos anos, que inclusive preferiu não se identificar, não só disse ao Gibizilla que tinha certeza absoluta que o guerreiro Zamor era coisa de autor norte-americano como ainda ficou indignado quando insisti que se tratava de uma criação do brasileiro Franco de Rosa.
Também, pudera – o universo de fantasia com pitadas de ficção científica deste selvagem que enfrenta feras sedentas de sangue pode, à primeira vista, te lembrar um certo alguém… “Zamor é um autêntico personagem do gênero aventura. Um personagem épico. Com narrativa escapista, porém, que conduz com suas histórias à reflexão”, explica Franco, em papo exclusivo com este site. É, a gente sabe em quem diabos você está pensando. Num certo bárbaro cimério, né?
“Como Zamor é um herói seminu, forte e que anda em trajes sumários distribuindo sopapos e com cara de poucos amigos, a comparação com Conan, à primeira vista, é inevitável”, admite o roteirista. Mas ele lembra que o personagem brasileiro é dos tempos das cavernas, que atua na borda das grandes e evoluídas Atlântida e Lemúria, cidades sempre em guerra, e portanto não tem a ver com o universo de magia e poder do Conan. “A editora Grafipar lançou Zamor em 1980, em uma revista chamada Sexo Selvagem. Mas Zamor já existia desde 1971, quando eu fazia o fanzine Gudizo”.
Ele lembra que conheceu o cimério só um ano depois, em 1972, numa edição desenhada por Barry Smith e com roteiro de Roy Thomas. “Com Thomas, eu trocaria e-mails em 2000 para publicar as tiras de Conan, na revista Stripmania da Opera Graphica Editora”, relembra. Entre suas inspirações para Zamor, estão títulos como “Targo”, de Fernando de Lisboa; “Hur”, de Wilson Fernandes; “Tarum” de Paulo Fukue; “Jongo”, de Paulo Hamasaki; “Tor”, de Joe Kubert e o “Tarzan” de Edgard Rice Burroughs, quando no mundo de Paul-ul-dom. “E, principalmente, Zhor, o Atlanta, de Francisco de Assis com desenhos de Walmir Amaral, publicado pela Editora Taika em 1972”.
Só que agora, quatro décadas depois, este nosso decano de adaga em punho ganha uma nova chance, graças a um projeto da Editora Universo Fantástico financiado com sucesso no Catarse.
O retorno de um herói
A ideia é que esta nova edição de Zamor não seja uma mera republicação, mas sim uma reconstrução. “Ela traz uma releitura das duas aventuras originais de 1982 desenhadas por Mozart Couto”, explica Franco. “Com nova arte-final em todas as páginas da primeira história e acréscimo de cenas. E novas imagens na segunda aventura, que também recebeu novo tratamento de finalização”. O autor reforça que ficou uma obra mais apurada em termos de acabamento e mais arrojada, devido às novas artes de Mozart e também pela participação de colaboradores de peso realizando pin-ups, como Pedro Mauro Moreno, Osvaldo Sequetin, Julio Shimamoto, José Márcio Nicolosi, Sam Hart, Marcatti e outro amigos.
Além disso, o volume novo também possui uma HQ colorida escrita e desenhada pelo Mozart, feita em uma técnica narrativa e com artes em um estilo semelhante aos desenhos animados de aventura em 2D. “E ainda apresentamos a origem de Zamor, criada agora, na qual Mozart aplica uma terceira técnica de desenho”.
Franco, aliás, é só elogios ao parceiro de trabalho. “Um artista que domina como poucos no mundo a anatomia, tanto de figuras humanas como de animais. Aliás, é um desenhista muito acima da média”, elogia. “E que sabe narrar uma HQ como muitos profissionais deveriam aprender”. Mozart diz que se preocupou mais com o acabamento, com a arte, e trabalhou muito no digital desta vez. “Já na HQ da gênese de Zamor, voltei aos primórdios e fiz tudo somente com lápis e papel”.
Mas… por que Zamor? Por que agora?
Afinal, estamos em 2021. O que os autores acharam que o personagem e suas histórias poderiam trazer de novo para os tempos em que vivemos?
Para Mozart, minimamente é uma forma de mostrar ao leitor jovem, que conhece pouco sobre os quadrinhos feitos no Brasil, o que já foi feito aqui. “Eu não sei ao certo, mas parece que Zamor já atraiu leitores novos. O primeiro deles foi o próprio editor que se interessou muito pelo personagem!”, conta o desenhista. “Então eu penso que ele tem elementos que superam as barreiras do tempo. Com certeza, Franco conseguiu lidar, consciente ou inconscientemente, com algo que é universal e atemporal e trouxe para os personagens e para as histórias e crônicas”.
Além disso, Franco defende que nunca se teve a oportunidade de apresentar todo o universo de Zamor ao leitor como eles podem fazer agora. “Creio que a Editora Universo Fantástico conseguiu atrair uma galera muito grande de novos leitores através de sua rede de contatos de colecionadores e através desta campanha no Catarse”, diz. “De verdade, acredito que o público nostálgico em relação ao Zamor é pequeno. Mas se este povo conferir esta nova edição vai gostar muito. Ela está supercaprichada”.
E mais – a dupla ainda é uníssona ao dizer que, por mais que estejamos falando de um personagem dos anos 1980, questões relativas à gênero ou raça, por exemplo, não serão um grande problema. “Zamor se adapta bem à evolução de pensamento que tivemos com relação a qualquer possível modo inadequado de tratar as coisas daquela época”, explica Mozart.
Já Franco lembra que, nas primeiras aventuras do herói, publicadas nas revistas avulsas e antes mesmo do Almanaque de onde foram tiradas estas duas aventuras clássicas desenhadas pelo Mozart, há um personagem que acompanha o personagem principal e que não tem seu sexo definido. “Ele é de uma raça que opta na adolescência qual sexo ter, ou se não terá sexo algum. Esse personagem atua em algumas das crônicas desta edição”.
Para completar, bom, Zamor é um personagem brasileiro (embora, insisto, aquele meu camarada ainda se recuse a acreditar nisso, hahahahaha) e cujas aventuras se passam na América do Sul. Afinal, portanto, o quanto de Brasil conseguimos enxergar em Zamor? “A geografia de hoje não será vista em suas aventuras”, afirma o autor. Porém, todas as situações relacionadas à formação do caráter humano e da vida em sociedade estarão lá, incluindo os preconceitos já naquela vida primitiva, das tribos, aldeias e cavernas, contra pessoas vistas como diferentes, solitárias, sinistras, aproveitadoras, patifes…
“Enfim, todos os males surgidos ao se abrir a caixa de Pandora, que afligiriam a humanidade, desde a velhice, a doença, a loucura, a mentira e até a paixão, como se conta na Mitologia Grega”, conta. E completa: “e o Brasil é todo tragédia grega”. Portanto, no fim, sim, Zamor é o mais puro suco de Brasil.