Homem-Animal: a obra-prima de Grant Morrison ganha Omnibus no Brasil
Metalinguagem pura e dois encontros marcantes — um com um coiote, outro com um escritor que ainda tinha cabelo — fizeram desta passagem um clássico contemporâneo dos gibis de super-heróis
Por THIAGO CARDIM
Eram os idos de 1980. Os leitores da DC tavam meio na ressaca da Crise nas Infinitas Terras e a editora, agora com sua cronologia limpinha e pronta para começar (quase) do zero, resolveu chacoalhar as coisas dando um bando de personagens secundários nas mãos de uns jovens britânicos pirados com a promessa de liberdade total… e vamos dizer que estes moleques souberam aproveitar a oportunidade.
Um tal de Alan Moore teve a chance de pintar e bordar com o Monstro do Pântano e entregou aquele que, até hoje, ainda é considerado um de seus melhores trabalhos. Da mesma forma, o conterrâneo Neil Gaiman foi lá, pegou o Sandman e criou um verdadeiro ícone dos quadrinhos adultos, cujo legado saiu das HQs e mexeu até mesmo com pilares da literatura “tradicional”. E quem também entrou nesta onda foi um escocês fanfarrão de nome Grant Morrison. Para ele, sobrou um herói meia-boca chamado… Homem-Animal.
Criado pela dupla Dave Wood e Carmine Infantino e publicado pela primeira vez na edição 180 da revista Strange Adventures, de 1965, Buddy Baker nunca foi um Superman ou Batman. Beeeeem longe disso. Na real, o Homem-Animal mal conseguiu ser um Besouro Azul ou Gladiador Dourado. Com a capacidade de pegar “emprestadas” as habilidades dos animais dos quais se aproximava (tipo a força proporcional de uma formiga ou o voo de um pássaro), sempre esteve meio perdidão no terceiro escalão da DC, fazendo uma aparição especial no gibi da Mulher-Maravilha, outra em Action Comics, nada de muito especial. Até que Morrison cruzou o seu caminho. E no caso do Homem-Animal, esta afirmação foi LITERAL.
Programado pra fazer o que seria inicialmente uma série fechada em quatro partes, o escritor acabou ficando por exatos 26 números, entre 1988 e 1990, com arte de Chas Truog e Doug Hazlewood e capas (lindíssimas, aliás) de Brian Bolland (A Piada Mortal). Esta passagem, com altíssimas doses de lisergia, misticismo, filosofia, experimentalismo e metalinguagem, merecia um espaço entre clássicos absolutos como Watchmen e O Cavaleiro das Trevas – e quem não teve a chance de ler a bagaça, agora pode conferir na íntegra em um daqueles Omnibus gigantões, capa dura, com mais de 700 páginas. Já tá lá em pré-venda, no site da Panini. O preço é uma paulada, a gente sabe. Mas vale cada centavo, caso você resolva investir.
Do que se trata, então?
Buddy era somente um cara como eu e você. Um tanto atrapalhado e sem entender direito como seus poderes funcionam, ele é antes de tudo um pai de família, casado com Ellen (um dos melhores personagens do gibi, aliás, bem distante da mocinha em perigo apavorada) e pai da doce – e um tanto assustadora, é verdade – Maxine (5 anos) e do aspirante a rebelde Cliff (9). Trabalhando como dublê nas horas vagas para colocar alguma grana em casa, Buddy se torna praticamente os olhos maravilhados do leitor como o sujeito comum em um mundinho de heróis fantasiados, alienígenas e tecnologia de cair o cu da bunda.
Morrison acerta não apenas ao abrir as portas da casa dos Baker e escancarar a sua realidade familiar, tão cotidiana e pouco super porém muito interessante, mas ao fazer o Homem-Animal começar a questionar o segundo nome de seu alterego heroico. Rapidamente ele se torna vegetariano e para de consumir qualquer coisa que signifique sofrimento para aqueles que lhe emprestam suas habilidades naturais (o que refletiu diretamente na conduta do próprio Morrison, aliás).
Na sequência, começa a se meter em jornadas de luta pelos direitos animais, prejudicando suas duas carreiras por combater radicais com radicalismo. Enfurecido com a brutalidade de um pescador enquanto dava uma força para um bando de eco terroristas que tentavam salvar um golfinho, o Homem-Animal joga o camarada no oceano, esperando que ele se afogue. Mas um golfinho, vejam só, o salva. “Nosso jeito é diferente”, narra o animal.
Ouch. Toma na cara, Animal.
Claro que são interessantes os encontros de Buddy com personagens como Fera B’wana, Vixen (com uma carga sexual fortíssima – e muito bem trabalhada) e mesmo o Mestre dos Espelhos, antigo vilão merda do Flash e que, aqui, se torna uma ameaça verdadeira pela primeira vez na vida. São muitos os encontros com espíritos, guerreiros enfurecidos de Thanagar (Morrison foi obrigado a colocar o crossover Invasão na jogada, mas o fez sabendo tirar sarro de si mesmo e da história) e até um vilão aposentado que está apenas cansado de viver.
Mas a principal sacada da jornada de autoconhecimento de Buddy Baker é mesmo quando Grant Morrison começa a brincar com a relação entre criador e criatura. E finalmente o herói descobre que é um diacho de personagem de quadrinhos, num desfecho simplesmente brilhante (e bem diferente do que rola, por exemplo, com o Deadpool).
Tudo começa na já histórica, triste e genial O Evangelho do Coiote. Temos um coiote que se parece MUITO com aquele que vivia perseguindo o Papa-Léguas e que vem para a nossa realidade (ou a da DC, no caso) depois de uma espécie de trato com seu criador. É a hora de cessar o ciclo de violência sem fim em seu mundo, um universo paralelo que obviamente se parece com um desenho animado dos Looney Tunes. Para que as mortes acabem, o coiote é condenado a sofrer em nosso mundo. Mas aqui, as regras são diferentes. O Homem-Animal acaba sendo mero coadjuvante de uma história que parecia ter vindo do nada com coisa nenhuma, mas que deixaria as marcas para o inesperado episódio final.
Depois de uma série de alucinações induzidas por peiote (aquele pequeno cacto mexicano), Buddy volta para casa e encontra toda a sua família morta. Enlouquecido, ele chega a pedir ajuda ao amigo Rip Hunter – sim, o mesmo de Legends of Tomorrow – para voltar no tempo. Mas nada funciona. Até o Pirata Psíquico, o único personagem que se lembrava efetivamente da Crise nas Infinitas Terras, dá as caras. E começam os comentários, vindos de diversos personagens, a respeito de eles serem todos frutos de ficção, tratados de maneira sádica por seus criadores para o prazer dos leitores. Logo se iniciam as movimentações para fora dos quadros das páginas, levando o Homem-Animal para o limbo dos personagens esquecidos e, logo depois, para o NOSSO mundo. O mundo real, fora dos gibis. E lá (ou aqui?) ele então conhece um tal de… Grant Morrison.
Falar mais do que isso seria estragar a surpresa de uma série de diálogos metalinguísticos nos quais o autor e super-herói questionam e criticam o modus operandi de toda uma indústria, ao mesmo tempo em que fazem quase que uma declaração de amor aos leitores. Assim que os dois se encontram, fica claro que estamos diante de um dos momentos mais deliciosos (e, em certo ponto, arrepiantes) dos gibis de super-heróis.
Quando questionado, em entrevista ao Slush Factory, sobre o quão difícil foi transformar um herói de “meia-tigela” em uma série em quadrinhos aclamada pelos fãs ao longo de décadas, Morrison afirmou que não achou o processo nada complicado. “Eu levo até os personagens mais bobinhos ridiculamente a sério”, soltou.
Faz total sentido, Morrison – em especial numa história na qual a morte de um coiote de desenhos animados é capaz de arrancar lágrimas de um bando de trintões e quarentões até os dias de hoje.