Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Os negros nerds estão redefinindo a cultura pop

Ao resistir àqueles estereótipos centenários, a comunidade negra de fãs reivindica um espaço há muito negado

Traduzido por GABRIELA FRANCO

* Este texto, escrito originalmente por Adam Bradley, foi publicado no jornal The New York Times. Mas a gente aqui no Gibizilla achou que faria sentido traduzir e ajudar a amplificar a discussão, que é absolutamente relevante tanto lá quanto cá. 

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Omar Holmon ainda estava no colegial quando sua mãe o chamou para conversar. “Pensei que íamos conversar sobre ser negro nos EUA”, lembra ele. “Ah não. Você já sabe de tudo isso ”, disse ela. “Quero conversar sobre você ser um baita nerd!”. 

Nas gavetas de sua cômoda, onde deveriam estar suas roupas, ele mantinha, em ordem de publicação, suas edições dos quadrinhos do Demolidor e do Lanterna Verde. Era fã de “Daria” e “Samurai Jack”. Jogava Mario Kart. Isso na cidade de Hackensack, Nova Jersey, no início dos anos 2000. A verdadeira preocupação de sua mãe era a de que ele nunca chegasse a namorar.

Duas décadas depois, Holmon, agora com 36 anos e morando no Brooklyn, é casado e co-fundador, junto com William Evans, 41, do site Black Nerd Problems. Seu livro, com o mesmo título, será publicado no final do ano. Ambos os projetos exploram o território da cultura nerd: quadrinhos, anime, e-sports, jogos de tabuleiro, ficção científica, fantasia e muito mais – tudo sob uma perspectiva negra que a comunidade nerd branca negligenciou historicamente e, pior ainda, atacou abertamente.

A dupla faz parte de uma nova geração de nerds negros (ou “Blerds”, como são chamados, numa junção das palavras “Black” e “Nerds”) – são críticos e criadores de conteúdo, acadêmicos e influenciadores sociais, artistas e ativistas que estão mudando a cultura nos anos que se seguiram à eleição de Barack Obama (o primeiro presidente negro e blerd dos EUA) ao popularizar histórias que trazem personagens negros como protagonistas. 

Jordan Peele, um blerd autodeclarado, construiu magistralmente sua influência com o avanço do novo terror no cinema por meio de seus filmes, “Corra” (2017) e “Nós” (2019), isso sem falar de sua releitura para a clássica série televisiva de ficção científica “The Twilight Zone” (aqui no Brasil, “Além da Imaginação”), que foi, ao longo de muitos anos, produzida e apresentada por brancos.

A diretora Ava DuVernay também se lança na ficção científica e fantasia, ao adaptar o romance “Despertar” de Octavia E. Butler e o gibi dos “Novos Deuses”, da DC Comics, para as telas. 

Nos últimos anos, a Marvel Comics colocou personagens negros em sua linha de frente – basta ver a série “Falcão e o Soldado Invernal”, estrelada por Anthony Mackie como o herói voador – bem como criadores negros como o diretor Ryan Coogler, que está trabalhando em uma nova série ambientada em Wakanda e numa sequência de “Pantera Negra” (2018), que está programada para ser lançada no próximo ano. Devemos citar também as séries de enorme sucesso de público e crítica como “Watchmen” (2019) e “Lovecraft Country” (2020) da HBO, com elenco principal majoritariamente negro. O momento Blerd parece ter apenas começado.

Mas ser negro e nerd nem sempre foi algo tão glamoroso assim…

Fãs negros de quadrinhos relatam terem sido alvo de perseguição de donos brancos de lojas de quadrinhos e impedidos de frequentar esse recinto, tão importante na formação da cultura nerd – pelo menos nos EUA.

Nas Comic-Cons, os cosplayers negros não raramente sofrem bullying e ataques racistas ao serem informados de que os personagens que escolheram representar não são (ou deveriam ser) negros. Em num nível ainda mais tóxico e ameaçador, gamers negros são alvo de racismo constante durante jogos online e muitas vezes são alvo de ataques e ameaças de morte quando os outros jogadores presumem que sejam ou mesmo quando eles se revelam como negros. Além dessas pressões externas, muitos fãs negros de fantasia, ficção científica e outros gêneros erroneamente codificados como espaços brancos são ridicularizados por amigos negros e familiares que enxergam seus gostos como sendo “coisa de branco” e os acusam de querer “agir como branco”.

A real é: os nerds negros quebram o estereótipo do que é ser negro. 

No imaginário coletivo estadunidense, que historicamente preconcebeu os negros como  ignorantes e emotivos demais ou sexualizados e extrovertidos, o nerd – inteligente e racional, nada sexy e decididamente não tão extrovertido assim – cria uma dissonância cognitiva. Os nerds negros não apenas confundem os clichês racistas, mas também perfuram a ortodoxia protetora da negritude transmitida nos Estados Unidos através de gerações. 

Sob o peso da escravidão e de símbolos horríveis como Jim Crow, os negros mantendo – ou pelo menos projetando – essa unidade cultural provaram que isso foi uma prática protetora necessária. A força veio em números, assim como a influência política e econômica. Mas o que aconteceria se anunciássemos publicamente que iríamos começar a fazer coisas que humanos fazem, a agir por conta própria, individualmente e não como um organismo vivo em grupo? 

Muito poucos estariam dispostos a se arriscar para descobrir como seria essa recepção…

Mas quem, em 2021, se beneficia por pensar nos negros apenas como um ser único? 

Certamente não os negros que, como todos os outros indivíduos, são amálgamas complexos de afinidades mutáveis, de identidades herdadas e escolhidas. E certamente não nerds negros, cuja própria existência é colocada em xeque porque eles representam uma divisão inconveniente para uma história direta da negritude nos EUA.

É só dizer a palavra “NERD”  que na hora você se lembra de óculos fundo-de-garrafa e protetores de bolso, do tipo usado por caras brancos estudiosos e socialmente desajeitados (e eles são quase sempre brancos e quase sempre homens), desses que são vítimas de bullying nos filmes clássicos dos anos 80.  

Pense em Lewis Skolnick, papel de Robert Carradine em “A Vingança dos Nerds” (1984), ou em George McFly, interpretado por Crispin Glover em“De Volta para o Futuro” (1985). Este é o Nerd 1.0. O arquétipo do Nerd 1.0 tem suas variantes, talvez a mais comum sendo o nerd do leste asiático (em oposição direta ao estereótipo do herói de ação das artes marciais), retratado com uma minoria que dorme com os livros, não faz sexo (e por isso é obcecada por sexo) como Long Duk Dong de “Gatinhas e Gatões” (1984). 

Embora o Nerd 1.0 possa parecer fácil de ser descartado ou lembrado apenas como uma figura cômica, sua influência marcou a vida de atores do leste e do sul da Ásia que sofrem com esse estereótipo até hoje. 

Mas, ao longo das décadas, o termo “nerd” sofreu uma evolução dramática – alguns chamariam até mesmo de deturpação. O que antes era um apelido para quem era inteligente e não tinha vida social, agora é reivindicado por qualquer pessoa com profundo conhecimento por alguma área com a qual tenha afinidade. Vamos chamar de Nerd 2.0. Colecionadores de tênis são nerds agora, obcecados com acessórios e vicissitudes do mercado de brechós. O mesmo acontece com os experts em maconha, com conhecimento enciclopédico de diferentes variedades e os efeitos que produzem. 

“Nerd não é mais o cara diferente agora. É um espectro”, diz Holmon.

O nerd negro mais famoso da ficção, Steve Urkel, interpretado pelo ator Jaleel White durante as nove temporadas do sitcom estadunidense “Family Matters” (sem tradução ou veiculação aqui no Brasil) é decididamente um Nerd 1.0. 

Ele usa calças com suspensórios; seus óculos enormes estão presos à cabeça por uma corrente. Desajeitado e impossível, seu papel no programa é perturbar a vida de seus vizinhos, a família Winslow, e então falar sua frase de efeito “Será que eu fiz isso?” Urkel é, em partes, cansativo e cativante, o que explica como ele passou de personagem coadjuvante à estrela do show. Repita seu papel em 2021, no entanto, e provavelmente ele terá de ser um Nerd 2.0: talvez um jovem Questlove, o baterista erudito dos Roots, ou um Daveed Diggs, o ator e rapper adolescente vencedor do Grammy e Tony Award que agora tem um papel de alien Urkeliano na série americana “Black-ish”.

Melhor ainda, pense em Issa Rae, a atriz de 36 anos, escritora e produtora por trás da série de sucesso da HBO “Insecure”, cuja quinta e última temporada irá ao ar ainda este ano. A protagonista, Issa Rae, compartilha o mesmo nome de sua personagem e é uma total blerd: graduada de Stanford trabalhando em uma ONG na sua cidade natal, Los Angeles, que é ao mesmo tempo estranha, peculiar e legal. No entanto, quando questionada por um jornalista do The Atlantic em 2018 se ela via seu personagem como a evolução natural do Blerd de Urkel, Rae rebateu: “Eu nunca identifiquei minha personagem como uma nerd, porque o nerd clássico – o gamer, o tipo fanático por Star Wars ou ficção científica ou Senhor dos Anéis  – simplesmente nunca me interessou”, disse ela. 

Em vez disso, ela procurou explorar o “meio-termo” dos personagens negros – a complexidade e peculiaridade frequentemente negadas pela perspectiva polarizada sobre os negros como legais ou cafonas. 

A relutância de Rae em aceitar o título de blerd não impede a classe de abraçar seu programa: “Não sei se ela percebeu o quanto de impacto causou nas garotas negras que se autodenominam nerds”, diz Jamie Broadnax, 40, fundadora do grupo online Black Girl Nerds, em Virginia Beach.

Nerds são “cool” agora e não é porque eles mudaram tanto. Afinal, grande parte de ser um nerd está na insistência teimosa das excentricidades de nossas paixões e personalidades. Em vez disso, a própria noção de cool mudou. 

Em um cenário de mídia cada vez mais fragmentado, a dedicação monástica a um interesse restrito não é mais estigmatizada como algo estranho. Comunidades se constroem em torno de afinidades, conectando pessoas por meio de plataformas de mídia social que promovem a troca rápida de ideias – ou, trocando em miúdos, aproximam os nerds. Coolness também é um tipo de poder e um grande poder repousa agora em setores da sociedade, especialmente na tecnologia, onde os nerds tradicionalmente prosperam.

“Os nerds detêm as chaves do castelo”, diz Terril “Rell” Fields, o fundador de 33 anos da blerd.com, sediada em Raleigh, Carolina do Norte. Enquanto crescia, Fields era “quase um nerd clássico”. Antes de adquirir lentes de contato para esportes, ele usava óculos enormes, com uma lente mais grossa que a outra. “Lá estava eu na mesa do almoço com as crianças jogando Magic: The Gathering, o que não me ajudou em nada”, diz ele, rindo. 

Quando ele lançou o site em 2019, depois de reunir uma equipe de colegas blerds, isso marcou o ponto culminante de milhares de horas gastas jogando, folheando gibis e assistindo animes. 

“Blerds ainda amam os mesmos tipos de conteúdo [que outros nerds]”, diz ele. “Um blerd apenas vê a cultura nerd através de suas lentes culturais negras”. Eles podem notar coisas que outros nerds não percebem: um personagem coadjuvante preto ou não branco em uma história em quadrinhos que, de outra forma, poderia ser esquecido; uma alegoria política de raça representada em uma série de televisão de ficção científica, por exemplo.

Quando se trata de encontrar pontos distintos na cultura nerd, os blerds não estão sozinhos. 

Os portadores de deficiência são um tema muito abordado nos fandoms – seja através do Professor Charles Xavier e seus X-Men ou da neurodiversidade na ficção científica – e também são uma faceta definidora da nova cultura nerd, com fãs pressionando por acessibilidade nos jogos e maior inclusão nas Comic-Cons. Os nerds queer e trans também estão cada vez mais visíveis e, ao longo de linhas raciais, os Indiginerds reivindicam espaço, assim como os subconjuntos latinos e asiáticos do universo. 

Bao Phi, que cresceu como um “nerd refugiado vietnamita do gueto” nas cidades gêmeas de Minnesota, escreveu uma coluna em 2010 para o Star Tribune que inspirou o site thenerdsofcolor.org, que agora reúne uma coalizão interracial nerd.

Mas, para muitos dos nerds negros que cresceram nas últimas duas décadas, o termo “Blerd” foi uma tábua de salvação. Ele lançou uma espécie de feitiço protetor, oferecendo uma maneira secreta para os fãs negros se conectarem e se comunicarem em espaços que muitas vezes eram hostis à sua presença. “A maioria de nós que se autodenominam blerds estava simplesmente tentando se encontrar”, explica Karama Horne, fundadora de um site chamado theblerdgurl, no Brooklyn. 

Antes do advento do Twitter em 2006 e do Instagram em 2010, Horne frequentava outros espaços virtuais onde geralmente testemunhava mulheres e pessoas não brancas sendo intimidadas. Assim que a palavra “blerd” ganhou popularidade, foi possível apoiar uns aos outros contra trolls racistas e sexistas. No final das contas, a palavra veio definir um movimento, que estava escondido há tempos, à vista de todos.

Um pouco de história

Uma breve história dos nerds negros remonta a antes da Guerra Civil americana, mais diretamente a Phillis Wheatley, jovem negra nascida escrava que foi a primeira pessoa de ascendência africana a publicar uma coleção de poesia inglesa – apenas para ter que provar sua autoria, bem como seu conhecimento das obras de Homero, Ovídio e Virgílio. No livro onde constavam os 18 homens brancos “mais respeitáveis de Boston”, a introdução para seus poemas diz: “Poemas sobre variedades de assuntos religiosos e morais” (1777).

O nerd negro também vive nas páginas de Charles W. Chesnutt, cuja coleção de contos “The Conjure Woman” (1899) parece uma versão do final do século para o “Corra” de Peele, onde os recursos da imaginação negra superam o poço submerso da criação de mitos brancos e da dominação. E vive também em “Homem Invisível”, de Ralph Ellison (1952), cujo protagonista negro sem nome se autodenomina “funileiro-filósofo” e escreve a história de sua vida em seu porão equipado com precisamente 1.369 lâmpadas; até mesmo o título evoca o clássico de ficção científica de H.G. Wells, de 1827, “O Homem Invisível”, redefinindo a invisibilidade como uma metáfora para o apagamento da identidade negra sob o olhar branco racista.

Na década de 1980, em Mobile, Alabama, dois primos – um menino e uma menina – passaram horas juntos criando mundos imaginários. Ele amava histórias em quadrinhos; a série Incrível Hulk era sua favorita porque, embora o garoto nunca pudesse ser branco como Bruce Banner, ele talvez pudesse ficar verde como o Hulk. Ela amava ficção científica; Tanith Lee e C.S. Friedman a encantaram, assim como Octavia E. Butler, que era negra como ela. Avançamos metade de suas vidas e o menino, agora um homem de 48 anos, o comediante e comentarista político W. Kamau Bell, ganhou três Emmys consecutivos para “The United Shades of America” ​​da CNN. 

A garota, agora uma mulher de 48 anos, a romancista N.K. Jemisin ganhou três prêmios Hugo consecutivos pelos romances de sua trilogia Broken Earth. “Eu fico arrepiada só de pensar nisso”, diz Bell. “Nós dois ainda crianças na casa da minha avó, deitados no chão, ela escrevendo e eu desenhando, nos apoiando mutuamente porque sentíamos que não nos encaixávamos”. Esse sentimento é comum aos nerds negros, especialmente entre aqueles que cresceram antes de ter grandes nomes para representá-los.“Eu já tinha 30 anos quando ouvi a palavra‘ blerd ’. E pensei: isso teria sido útil nos meus 12 anos”, diz Bell. Segundo ele, é como “fincar uma bandeira”. Blerd reivindica o livre e pleno exercício da individualidade negra no espaço de uma identidade coletiva.

Não é coincidência nenhuma que as vozes criativas dos negros tenham se afirmado com tanta força em um momento em que o sofrimento e a morte dos negros dominam os noticiários: Eric Garner, Elijah McClain, Derrick Scott e George Floyd gritaram “Não consigo respirar” antes de serem mortos nas mãos das “autoridades”. 

A frase tornou-se um grito de guerra para os ativistas do Black Lives Matter. Bell ouve nessas palavras desesperadas um apelo à ação para os artistas também. Os romances de sua prima, ambientados em planetas distantes, povoados por seres cujos nomes soam estranhos, são mais do que fantasias escapistas. “Esse tipo de arte individualista cria mais espaço para os negros respirarem”, diz Bell. “Cria mais espaço para relaxarmos e sermos nós mesmos. [Então] podemos nos levantar e lutar de verdade quando for preciso”.

A arte e o ativismo geralmente andaram juntos na vida dos negros americanos. “Cada revolução, cada evolução, tem algum tipo de movimento estético irmão ou irmã”, diz o artista John Jennings, 50, professor de mídia e estudos culturais na Universidade da Califórnia, em Riverside, que ilustrou o romance gráfico de Damian Duffy, “Parábola do semeador”, adaptação de Butler, além de “Kindred” (2017) – e, em 2015, desenhou a capa de uma coleção elogiada, “Ninhada de Octavia: histórias de ficção científica de movimentos de justiça social”, em que artistas-ativistas exploram como a fantasia também pode ser um recurso para mudanças políticas. 

No prefácio, os coeditores do livro, Walidah Imarisha e Adrienne Maree Brown, lançam um apelo à ação: “Acreditamos que é nosso direito e responsabilidade escrevermos sobre o futuro”.

“A ideia de um futuro negro ainda é radical”, diz Jennings. 

“Pense nisso: antes de ‘Jornada nas Estrelas’, você não tinha séries ou filmes que representassem o povo negro ou pessoas não brancas no futuro. Por quê? Fomos assassinados? Nós fomos jogados no oceano? Nós nem imaginamos”. 

O Afrofuturismo usa a literatura e as artes gráficas, a música e a dança, o cinema e a televisão para imaginar os negros em um futuro que lhes foi negado. Esses atos de reparação são mais do que entretenimento, embora também precisem e devam ser divertidos; eles argumentam que, mesmo em futuros imaginários, devemos fazer um balanço do passado. Nessas histórias afrofuturistas, os pontos de virada mais inconcebíveis não são fictícios como portais de viagem no tempo e máscaras de Rorschach, mas reais. 

As séries  “Watchmen” e  “Lovecraft Country” revisitam o trauma abrasador do Massacre de Tulsa, em 1921, no qual turbas brancas mataram centenas de cidadãos negros e incendiaram o próspero bairro de Greenwood, em Oklahoma. Ao fazer isso, ambas as séries contornam o tempo linear, abrindo novos mecanismos para enfrentar uma herança torturada. “Muitas vezes, estamos arrastando nossa dor conosco para o futuro”, diz Jennings. Ao retratar essa atrocidade histórica e reformulá-la em uma narrativa negra alternativa, com heróis negros prontos para lutar e mudar a história, essas narrativas oferecem um caminho, muito parecido com o blues, para transcender a dor, não fugindo dela, mas transformando-a em arte.

O Movimento Novo Negro da década de 1920, liderado em parte por W.E.B. Du Bois, o filósofo, político e estrategista (e autor de uma história de ficção científica em 1920, chamada “O Cometa”), levou ao Renascimento do Harlem. 

O Movimento Black Power do final dos anos 1960 e 1970 trouxe o Movimento das Artes Negras. Não deve ser surpresa que a emergente insurgência política está tomando forma em um momento em que os artistas são cada vez mais atraídos para a ficção especulativa e a fantasia, o terror e histórias alternativas como uma trégua necessária contra a pressão implacável do combate à supremacia branca e como um recurso criativo para enfrentar os desafios atuais. 

Em uma era de pós verdades na qual lasers espaciais não aparecem só nos quadrinhos mas em odiosas teorias da conspiração, a ficção científica e a fantasia podem nos fornecer a distância necessária de nossos conflitos atuais para que possamos reimaginar um novo conjunto de normas e valores – ainda que não aqui, mas em uma galáxia muito, muito distante. 

“Não há nada de errado com o escapismo e não há nada de errado em usar a ficção científica e fantasia como autocuidado”, diz Horne. “Ter momentos de felicidade e alegria entremeados de dor nos define. Isso faz parte da nossa cultura”.

Mica Burton é uma dessas nerds renascentistas: apresentadora de e-sports, cosplayer, aficionada por anime e jogadora de Dungeons & Dragons. Ela também é fluente em élfico, uma linguagem criada por J.R.R. Tolkien na saga Senhor dos Anéis, que colocou em prática no início deste ano durante sua aparição na Narrative Telephone, uma websérie desenvolvida durante a pandemia por um coletivo de jogadores de RPG chamado Critical Role. Lançado oficialmente em 2015 por Matthew Mercer, o Critical Role transmite jogos de D&D ao vivo por meio da plataforma de vídeo Twitch. Os episódios do YouTube obtiveram mais de 288 milhões de visualizações.

Burton, 26 anos e residente em Los Angeles, não é uma blerd, ela me diz, mas uma nerd que por acaso é negra. “Não estou tentando assimilar nada, mas estou tentando existir num espaço sem ter que propositalmente afirmar que sou diferente”, explica ela. Essa resistência ao apelido de blerd sugere uma divisão geracional, mesmo entre aqueles em extremidades opostas da faixa milenar. “Conheço muitas pessoas na faixa dos 20 ou mais jovens que não gostam do termo”, diz Horne. “Eles dizem:‘ Não entendo por que temos que nos chamar de algo diferente. Por que você não pode ser apenas um nerd? Eu rio porque fico tipo: estou feliz por sentir que há tantos de nós que não precisamos mais ter que nos diferenciar”. 

Blerd ou nerd, o desafio é o mesmo: se sentir confortável e acolhido no meio que você escolheu viver. 

“Todo o propósito da minha carreira é ser a representação que não tive quando criança”, diz Burton.

Quando criança, suas tendências nerds foram estimuladas por uma família que a apoiava. Na escola primária, ela e seu pai jogavam videogame juntos, compartilhando uma paixão por jogos de fantasia e luta. “Jogamos Halo juntos e eu chutava a bunda dele”, diz ela. “É assim que pais e filhas fazem”. O pai de Mica Burton é ninguém menos que LeVar Burton, que interpretou o icônico papel de Kunta Kinte em “Raízes” (1977), e também foi o Tenente Comandante Geordi La Forge em “Star Trek: A Nova Geração” entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Ele é algo como o santo padroeiro dos nerds negros. 

No início, porém, Mica iniciou seu próprio caminho. “Ela sempre foi mais fã de Star Wars do que de Star Trek”, diz LeVar, 64, também residente em Los Angeles. Essa autenticidade foi crucial para que ela abrisse caminho para nerds como ela – que se identifica como uma mulher cis bissexual negra – em espaços em que às vezes as pessoas não sabem o que fazer com ela ou, pior ainda, são ativamente hostis à sua presença. “Não sei quantas vezes tive que dizer isso às pessoas: “Ei, se eu participar de sua live, você tem moderação para bloquear a palavra PRETA? Porque isso vai acontecer”, diz ela.

Seu pai conhece o desafio de encaixar sua negritude em lugares onde nem sempre ela é bem-vinda. Mesmo na série infantil “Reading Rainbow (não exibida no BR), que ele começou a apresentar em 1983 quando tinha a idade que sua filha tem hoje, o ator teve que lutar para manter sua identidade, seu brinco, seus penteados e as coisas que definiram sua juventude negra. “É uma parte de quem eu sou”, disse ele aos produtores na época. “Se você quer que eu faça este show, então você tem que me aceitar por inteiro”. Eles aceitaram.

Essa resistência em levar sua negritude para todos os lugares é parte do que torna LeVar uma presença duradoura no imaginário da cultura americana. Hoje, ele faz sucesso com um podcast, “LeVar Burton Reads”, onde empresta sua voz a autores pioneiros e emergentes da ficção científica e fantasia negra, de Samuel R. Delany e Nalo Hopkinson a Nnedi Okorafor e Suyi Davies Okungbowa. “Foi realmente meu amor pela ficção científica que me colocou diretamente na categoria [de nerd negro], mesmo antes do termo surgir”, diz LeVar. “Para um jovem negro de Sacramento no final dos anos 60, era preferível imaginar outros mundos e outras formas de existência que não envolvessem preconceito racial.” completa. 

Como qualquer outro fã de ficção científica, ele foi atraído por histórias emocionantes de galáxias distantes; ele também foi movido pela promessa urgente de um futuro onde um dia poderia ser livre.

Assistindo “Star Trek” de Gene Roddenberry na década de 1960, LeVar descobriu um mundo mais civilizado e lógico do que aquele que ele via em outros canais de TV onde reportagens mostravam imagens de negros sendo atacados com mangueiras de incêndio e cães policiais. No retrato da tenente Nyota Uhura, vivida por Nichelle Nichols, ele e outros espectadores negros podiam se ver como parte de um futuro que parecia longe do atual. 

Uhura representou a primeira fase de avanço na cultura nerd negra: a representação. Essa representação é particularmente profunda para as mulheres negras. “Uhura é minha personagem espiritual: uma mulher negra no fundo de uma sala cheia de caras brancos que tem que ouvir e traduzir tudo”, diz Horne. “Ninguém pensa no que Uhura faz. Ela falava todas as línguas do Universo. Essas são as mulheres negras!”.

As mulheres negras continuam a atuar como tradutoras ainda hoje, ajudando a levar a cultura blerd para o mainstream. É o caso da política Stacey Abrams, que é uma Trekker declarada; e da congressista de Massachusetts Ayanna Pressley, que é descrita por sua amiga Aisha Francis, acadêmica e ativista, como a típica blerd. 

Você vai constatar isso na música. Lizzo, que canta, dança, toca flauta, era uma nerd orgulhosa, membro da banda do colégio e usou essa energia para definir o estilo que a levou ao topo das paradas. E Janelle Monáe, que se juntou a Chester French em uma música de 2009 chamada “Nerd Girl”, na qual canta: “Eu sou sua garota nerd / Lendo quadrinhos no escuro / NPR minha estação favorita”. Agora ela é a inspiração para a heroína de Jemisin, Sojourner “Jo” Mullein na série de quadrinhos “Far Sector” (2019), derivada do universo do Lanterna Verde da DC.

Você pode ver a influência das mulheres negras nerds principalmente na televisão. Jessica Williams e Phoebe Robinson, a dupla que faz o podcast “2 Dope Queens”, dedicou um episódio ao vivo na HBO em 2018 ao tópico blerds. 

“O que é ser Nerd?”, Williams pergunta a uma de suas convidadas, a atriz Uzo Aduba, que responde com um devaneio sobre Ms. Pac-Man e Mortal Kombat. Em “Lovecraft Country”, a showrunner Misha Green criou uma extravagância Blerd, escalando um elenco predominantemente negro para imaginar um mundo de fantasia. Essas criadoras negras representam a próxima fase na evolução da cultura nerd negra, “Tem que ser mais do que colocar um rosto na tela, tem que ser uma autoridade no assunto”, diz Broadnax da Black Girl Nerds. “Pessoas negras em posições de poder”.

Este ponto de inflexão, de negros no poder tanto na frente quanto atrás das câmeras, se deu há apenas três anos. “

Quando se trata da cultura blerd, você tem antes e depois de Pantera Negra”, diz Jennings, o ilustrador.

O poder do filme foi parcialmente simbólico – o fato de ver um super-herói negro foi inspirador para uma geração de espectadores negros que antes tinham que se projetar imaginativamente em protagonistas brancos ou se contentar com personagens secundários. 

Com uma equipe que não apareceu tanto mas talvez responsável por resultados a longo prazo, o filme foi a visão e o produto de criadores em grande parte negros, liderados por Ryan Coogler. “Se não houvesse um Pantera Negra, não teríamos um Watchmen. Se não houvesse um Watchmen, eles nunca teriam dado a uma mulher negra milhões de dólares para criar o programa da HBO que foi Lovecraft Country”, explica Horne. Essas obras de arte e entretenimento de sucesso são conseqüências de um grande desempenho dos nerds – e nerds negros em particular – que de repente descobrem que suas paixões podem ser validadas. Como diz Horne, “não era considerado popular até 2018”.

O triunfo de “Pantera Negra” ajuda a explicar a ascensão dos nerds negros hoje. O filme criou uma oportunidade para blerds explicitarem seus gostos nerds em público. Mica Burton testemunhou “o sentimento de segurança entre os negros ao dizerem: eu leio histórias em quadrinhos. Eu assisto animes. Eu gosto dos filmes da Marvel”, diz ela. Se seus amigos te respondem quando você faz a saudação de Wakanda, você pode até dizer que ainda coleciona cards de Pokémon. Depois de 2018, ela acrescenta, “vimos uma grande comoção de negros no Twitter dizendo: ‘Eu gosto dessas coisas!’. E outras pessoas dizendo ‘Eu também gosto!’. E é assim que comunidades são formadas”.

O futuro dos nerd negros é um futuro retrô: uma revisitação às técnicas de storytelling, que já estão bem batidas. Em uma história em quadrinhos ou um videogame, uma série do Netflix ou uma campanha de RPG, você vai poder ter certas garantias – como diversidade racial e étnica, igualdade de espectro de gênero e orientação sexual – que o mundo ainda está tentando abarcar. 

Essas “coisas nerds” oferecem liberdade para a formação individual que tem sido historicamente negada aos negros estadunidenses por conta de um imaginário racista que insistia em projetar os negros de maneiras que eles servissem à fantasia e ao poder da supremacia branca. 

A cultura negra nerd rejeita a mistura grotesca de estereótipos racistas, bem como as imagens compensatórias de negros “cool” insistindo no exercício completo e às vezes confuso de ser humano. Dando autonomia para ser negro e desajeitado, negro e inteligente, negro e livre.

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