KIMOTA: Miracleman e um olhar genial sobre os super-heróis muito antes de Watchmen
Depois de finalmente ganhar uma publicação decente no Brasil, reinterpretação do herói Miracleman sob a batuta de Alan Moore começa a ser publicada no Brasil em formato encadernado – e o material vale MUITO a pena
Por THIAGO CARDIM
Dia destes, me meti a provocar os coleguinhas no Facebook e publiquei um post do tipo “comente aqui a sua opinião impopular sobre quadrinhos”, o que gerou diversas discussões interessantes (e outras nem tanto…) e a bagatela de quase 300 comentários. Entre eles, um grande amigo respondeu à minha cutucada gratuita ao Frank Miller fazendo sua própria cutucada ao Alan Moore – que, se você não sabia que eu adoro, pois está sabendo agora.
Entre os defensores do velho barbudo inglês que pintaram pra inflamar a conversa, começou então um papo sobre qual seria a melhor obra do sujeito. Watchmen, V de Vingança e A Piada Mortal, claro, pintaram disparados na frente. Mas muita gente se surpreendeu quando eu disse que, além do brilhante arco Lição de Anatomia, do Monstro do Pântano, minha obra favorita do Moore era mesmo Miracleman.
Se você tá aí com uma cara de ponto de interrogação, calma que eu te explico. Vamos a uma aulinha de história.
Quem é o Miracleman?
Advogados fazem tão parte desta saga quanto o quadrinista Mick Anglo, que criou em 1954 aquele personagem ainda chamado de Marvelman (sim, sim, ele só vai se chamar Miracleman mais tarde, peraí que a gente explica). Marvelman, no caso, era Micky Moran, um jovem repórter que encontra um astrofísico que dá a ele poderes baseados na energia atômica. Afinal, estamos falando do início da Guerra Fria e do medo nuclear. A partir daí, Micky só precisa gritar “KIMOTA!” (atomic, com k e de trás pra frente) para se transformar.
Te lembra algo?
Sim, isso mesmo: a encomenda para o surgimento do personagem partiu de uma editora chamada L. Miller & Son, que republicava na Inglaterra as histórias do Capitão Marvel produzidas pela Fawcett Comics nos EUA. Mas aí surgiu aquele processo de plágio movido pela DC, que acusava o herói que gritava SHAZAM! de ser uma cópia do Superman, a pequena Fawcett achou que não ia ter como arcar financeiramente com uma luta nos tribunais e Billy Batson saiu das bancas naquele momento. Sem ter o que publicar, a L. Miller & Son resolveu bancar o plágio do plágio. A estreia, inclusive, rolou na revista Marvelman #25, aproveitando a mesma publicação do antigo Capitão Marvel.
Pouco depois vieram o Kid Marvelman e Young Marvelman, criando a Família Marvelman, tal qual existia com Billy Batson e sua trupe. As histórias, que seguiam aquele clima inocente típico das HQs que vinham da Fawcett, eram publicadas semanalmente e não mensalmente, de acordo com a tradição britânica.
Esse tal de Marvelman chegou até mesmo a sair por aqui, entre os anos de 1953 e 1967, quando a editora RGE foi lá, e como se nada tivesse acontecido, alternava as aventuras do Capitão Marvel com as do Marvelman. Chegaram até a colocar o britânico na capa com as cores trocadas, todo de vermelho e amarelo, para que ele ficasse igual ao Shazam. Pra completar a lambança, chamaram o moço de Jack Marvel, para “deixar claro” que ele era parte da família Marvel. CLARO. Enfim. ¯\_(ツ)_/¯
Marvelman foi sucesso total e garantido até 1963 — quando finalmente a Inglaterra liberou a importação de gibis. Eis que então o pacotão Marvel e DC passou a ser consumido pela galera de lá e a L. Miller & Son não aguentou o tranco, fechando as portas. Não dava pra competir com a escala industrial da produção americana. Então, o Marvelman ficou em silêncio.
Surge um certo escritor inglês…
O herói permaneceria sem novidades até 1982, quando o editor Derek “Dez” Skinn, da Quality Communications, resolveu lançar uma revista mensal, P&B, só com antologias, a hoje lendária Warrior, e resolveu “ressuscitar” o Marvelman, quase 20 anos depois. O personagem ainda era bem conhecido e talvez os agora trintões que acompanharam o herói na década de 1960 se interessassem por uma abordagem mais moderna para o herói.
Para a missão, foi convocada uma jovem revelação local dos roteiros, um maluco de nome… Alan Moore. Ele tava por aí desde os anos 1970, escrevendo para fanzines, pra igualmente lendária 2000AD e pra Doctor Who Weekly. Mal chegou e o sujeito já trouxe V de Vingança na bagagem. Pensa nisso.
Já dá pra imaginar que a releitura do escritor, mais sombria, contemporânea, adulta, violenta, uma reinterpretação completa do mito do super-herói anos antes de sequer imaginar fazer Watchmen, se tornou nada menos do que histórica. Micky perdeu o Y e virou só Mick. Tornou-se um homem amargurado, sem perspectiva de futuro, que achava que aquelas estranhas lembranças eram apenas pesadelos. E o que era uma história sobre as amarguras da vida adulta se torna uma discussão sobre o papel dos deuses e o quanto o poder poderia corromper uma pessoa comum quando enfim Mick descobre que, sim, foi o Marvelman DE VERDADE. O sidekick voltou como um vilão, um sociopata com doses até então inesperadas de violência. E a arte poderosa de Garry Leach, que dava elegância e divindade quando preciso, mas também imprimia sujeira e podridão quando necessário, era o complemento ideal.
Moore ganhou evidência, o herói trouxe seu público antigo de volta e ainda conquistou toda uma nova geração de leitores. A ponto, claro de chamar a atenção da Marvel, que logo disse “escuta, este cara aí, que papo é este de chamar de Marvelman? Ôpa, este nome é meu”. Começava aí uma loooooonga trajetória de problemas que o perseguiriam…
Na época em que Skinn licenciou o personagem pra editoras americanas, o cara ficou com medo da gigante americana e eis que surgiu o nome Miracleman. Mas, ao mesmo tempo, começaram a rolar tretas financeiras com Moore, que sabia bem do seu valor – e esta disputa, que marcaria inclusive grande parte da trajetória do autor, foram e voltaram até que o roteirista, já conhecido por seu gênio forte e por não ter papas na língua, enfim abandonou o título. Assim, a última história do Marvelman foi publicada em Warrior #21. A revista acabou cinco edições depois.
Mas o ponto é que o Marvelman transformado em Miracleman estourou no mercado americano. E a editora Eclipse Comics, que então vinha publicando os gibis do herói na Terra do Tio Sam, pediu MAIS pro Skinn. E ele resolveu fazer. Mas a pergunta que pairava no ar – como diabos substituir Alan Moore?
Pro seu lugar, então, foi convocada OUTRA revelação fundamental daquela nova geração de autores britânicos — e é aí que Neil Gaiman entra na história, junto com Mark Buckingham, trabalhando pra Eclipse Comics, que não só reimprimiu como também resolveu dar continuidade à cronologia dos personagens. Aproveitando o gancho de Moore, Gaiman finalizou a chamada Era de Ouro do Miracleman com seis capítulos (sobre como as pessoas comuns estavam se virando em meio a uma utopia de seres superpoderosos) e deu então início à tal Era de Prata, no que seria uma “trilogia” de arcos.
Mas, adivinha, o gibi foi cancelado mais uma vez, com meras duas partes da Era de Prata, agora por conta da falência da Eclipse. A terceira parte da tal trilogia, Era de Bronze, nunca saiu da mente de Gaiman, assim como Miracleman Triumphant, um spin-off desenhado pelo brasileiro Mike Deodato, também acabou indo pro limbo.
MAS CALMA QUE NÃO ACABOU.
Senhoras e senhores, vamos DE NOVO aos tribunais
Anos depois, Gaiman escreveu Spawn pro Todd McFarlane, criando os personagens Spawn Medieval, Angela e Cogliostro. E começou a cobrar os direitos de utilização da trinca. Calma, isso tem relação SIM com o Miracleman. Porque aí, como barganha, o criador do Spawn foi lá e comprou os direitos da Eclipse, trazendo Miracleman no bolso, já que a negociação entre Anglo, o criador original, e Skinn nunca ficou lá muito clara e este último afirmou, inclusive, ter repartido os direitos entre os roteiristas posteriores, como Moore e o próprio Gaiman.
Enfim, o tal acordo entre McFarlane e Gaiman acabou nunca sendo efetivado num documento, a briga foi parar na Justiça e durou LOOOOOONGOS anos. O inglês chegou até a escrever a minissérie 1602 pra Marvel pensando especificamente em usar a grana pra custear a batalha judicial, usando uma empresa chamada Marvels and Miracles LLC. “Para o Todd, por fazê-la necessária”, colocou Gaiman na dedicatória. McFarlane prometeu até meter o Miracleman no universo do Spawn, mas nunca fez.
Só que a Casa dos Ideias, a-há, safadinha, sacou que alguém não tava sendo ouvido aí nesta conversa. Seus representantes pegaram um avião pra Inglaterra e compraram os direitos DIRETAMENTE do próprio Mick Anglo, criador do personagem, que negava ter vendido qualquer coisa pra Eclipse. Parte do assunto, pelo menos, se resolveu.
Em 2009, durante a San Diego Comic-Con, a Casa das Ideias anunciava com orgulho: o Marvelman era dela. Ou parte dele. As antigas histórias dos anos 1950 e 1960 começaram a ser reimpressas nos EUA em encadernados. Mas… e as fases de Moore e Gaiman?
Quatro anos depois, enfim, depois de muitas idas e vindas, Gaiman finalmente conseguiu o que queria. Levou a Angela pra fazer parte real oficial do Universo Marvel (no fim, ela se tornou filha de Odin e irmã de Thor e Loki) e permitiu que a Marvel pudesse republicar Miracleman desde o início.
Aliás, não publicaram apenas todo o material de Moore (identificado, a seu pedido, não por seu nome, mas como “O Escritor Original”), mas também uma história inédita, escrita por Grant Morrison e nunca antes vista, devidamente “proibida” décadas antes pelo barbudão, desafeto declarado do coleguinha de profissão.
Enfim, Miracleman vale DEMAIS a leitura. Se você estiver realmente querendo gastar uma graninha a mais com gibis de hominhos uniformizados, que seja com ESTES.