Darth Vader: o vilão que, no fundo, é nosso herói (o meu, pelo menos)
O personagem mais emblemático de uma das maiores sagas cinematográficas da história é nada menos do que o general de um império das trevas e que tem predileção por matar almirantes sufocados – mas cuja jornada é da mais pura redenção
Por THIAGO CARDIM
Um dos grandes heróis da minha infância, e que eu de fato adoro até hoje, é o Homem-Aranha. Isso todo mundo que me conhece sabe e todo mundo que acaba de me conhecer já saca de imediato. Eu era daqueles que já achava a Marvel mais legal do que a DC antes desta frase virar modinha por causa dos filmes, coisa e tal.
Mas eu sempre tive um outro grande ídolo. Que me conquistou de imediato assim que coloquei os olhos nele. Quando surgiu, ao som da Marcha Imperial – John Williams <3 – aquele cara enorme, de capacete e máscara, capa preta, caminhando orgulhoso por entre uma tropa de reverentes soldados de branco, o meu EU ainda garoto só conseguiu dizer “uau”.
Lembro disso com um sorriso como se fosse hoje. O cara na tela da TV era o Darth Vader, claro. E o mais engraçado é que eu sei que a situação, de maneira quase idêntica, se repetiu com muitos trintões ou quarentões que, como eu, ainda têm no grande vilão de Star Wars um de seus grandes heróis.
Por que, no fim das contas, um sujeito mascarado, trajando um uniforme sombrio e preto dos pés à cabeça e de respiração difícil exerce tamanho fascínio? Na lista dos grandes vilões do cinema compilada pelo prestigiado American Film Institute, Vader fica atrás apenas de dois psicopatas (Hannibal Lecter e Norman Bates).
Há quem diga que os vilões são mais divertidos, são mais soltos, mais livres. Pode até ser. Mas não parece ser exatamente o caso de Vader.
Porque ele é aquele caso do herói, da esperança máxima das forças do bem, que é obrigado a flertar com seu lado mais obscuro para salvar/vingar alguém que ama e, bingo, acaba sendo seduzido não pela promessa de poder, de dominação. Diferente dos delirantes e egomaníacos vilões que querem dominar o mundo, Vader tentou, a ser jeito, fazer o bem. Mas para isso, acabou usando as armas do mal.
George Lucas sempre admitiu ser um fanático por filmes japoneses – em particular, pela obra do cineasta Akira Kurosawa. Star Wars tem muito de Os Sete Samurais (1954), em especial em sua trilogia clássica, a partir de Uma Nova Esperança. Tanto é que o astro do filme, Toshiro Mifune, chegou a ser convidado por Lucas para o papel original de Obi-Wan Kenobi. E, segundo sua filha, Lucas não teria se dado por satisfeito com a negativa (o intérprete oriental achava que se tratava de um filme para crianças) e teria pedido que ele vivesse, então, ninguém menos do que Darth Vader (cujo capacete, não por acaso, é inspirado na roupa dos samurais, guerreiros disciplinados e bons de espada que trabalhavam como braços direitos para os senhores feudais do Japão medieval – te lembra algo?). Mifune também declinou.
A insistência do criador da saga espacial dos Skywalker faz sentido. Os Sete Samurais, sua obsessão cinematográfica, é a cristalização da chamada “jornada do herói” ou “monomito”, um conceito criado pelo antropólogo Joseph Campbell.
O estudioso norte-americano estabeleceu, inicialmente em sua obra O Herói de Mil Faces, uma jornada cíclica dividida estruturalmente em três etapas (partida / iniciação / retorno) e que pode ser aplicada na narrativa de diferentes mitos, de Prometeu a Buda, passando até mesmo por Jesus Cristo – é, o mesmo camarada que nasceu do ventre de uma mãe como resultado de uma geração divina, sem conjunção carnal, exatamente como um jovem menino loirinho de nome Anakin Skywalker (cujo futuro, imagino, você já saiba).
Se você analisar os estágios da jornada do herói, Anakin vivia em seu mundo comum até receber, de Qui-Gon-Jinn (Liam Nesson), o chamado da aventura. Acontece, claro, a reticência do herói, pois ele sente medo – afinal, ele é uma criança. E é neste momento em que o mestre Yoda percebe que tem alguma coisa errada nesta parada. Mas depois da morte de Jinn, Obi-Wan Kenobi (Ewan McGregor) assume o papel do mentor, que o treina para a aventura.
Ele descobre a Força e cruza o primeiro portal. Anakin então se torna um herói renomado, ultrapassa as primeiras provações, passa pela aproximação – mas quando chega o momento crucial, a tal da provação difícil ou traumática, a porca torce o rabo. Em sua maior crise, quando sua mãe é torturada e morta, Anakin descobre que algo diferente vive dentro de si. Ali, surge Vader, mesmo antes de Palpatine plantar suas sementes. O momento em que ele deveria receber a sua recompensa e trilhar o caminho de volta…aí, Anakin falha miseravelmente. E o tal “elixir” com o qual ele volta ao mundo comum para ajudar aqueles que ama é algo que o envenena e ele mal consegue controlar.
Ele se interessa pelo treinamento jedi para abandonar um passado de escravidão. Se entrega ao lado sombrio não porque quer conquistar a galáxia, mas sim porque quer salvar a mulher que ama. E se torna um monstro, claro – do tipo que dá pra ver principalmente nas obras do universo expandido, nos gibis, nos livros, enfim. Um monstro que, quando descobre seu filho, sente a armadura rachando de fato.
Se em Rogue One vemos, ainda que brevemente, um Darth Vader explorando o seu poder de guerreiro e revelando um lado ainda mais impiedoso, o livro Lordes dos Sith, do escritor Paul S. Kemp (conhecido principalmente por seu trampo nos livros de Forgotten Realms), ajuda a dissecar ainda mais o homem que sobrevive sob a capa e a armadura. Parte do novo cânone literário de Star Wars pós-reorganização dentro dos portões da Disney, a obra se passa logo depois que o Império se estabeleceu na Galáxia, quando a Rebelião ainda não existia como oposição declarada. São os primeiros anos da “parceria” entre Vader e Palpatine – anos em que eles têm que enfrentar a resistência num planeta conhecido como Ryloth, um dos territórios da Orla Exterior.
Ele não usa a Força focado na sede pela destruição: o combustível para que ele se conecte ao seu poder especial é o ódio. A raiva que sente não de seus inimigos, mas de si mesmo. É este fogo que queima por dentro, por baixo da expressão impassível de seu capacete, que alimenta o seu dia a dia.
“A armadura impediu que ele sentisse a dor da pontada – mas, ainda que a sentisse, ela nunca seria maior do que a dor que ele sente o tempo todo dentro de si mesmo”, narra Kemp, durante a descrição de uma batalha. “Eu odeio tudo que vocês representam”, diz uma das vítimas de Vader, diante da visão de seu sabre de luz. “Eu matei, mas todas as vezes em que matei, foi por amor”, completa. Antes de cortar sua cabeça, ele responde: “Eu entendo exatamente o que você quer dizer”. Uau.
No fim das contas, Darth Vader é um vilão que se tornou herói – mas ainda guarda dentro de si a vontade de se redimir, de reencontrar o caminho que um dia trilhou. Vader se desviou da Jornada do Herói mas, por baixo do capacete, vive tentando reencontrá-la. O Imperador Palpatine, ao final de O Retorno de Jedi, que o diga.
Quando a gente vê o Vader em ação nos episódios IV, V e VI e tem toda esta carga de informação adicional, ainda mais das obras mais recentes, ele se torna ao mesmo tempo mais perigoso, odioso e frágil. Darth Vader ganha novas camadas, fica mais profundo. Se torna ainda mais vilão e, ao mesmo tempo, cada vez menos vilão.
Um dos meus heróis de infância não é necessariamente um herói. Mas, afinal de contas, nem a gente é tão herói assim quanto imagina, não é mesmo?
Pra quem se interessou pelo assunto, eu e a Gabi Franco gravamos um podcast especial lá no Imagina Se Pega no Olho só sobre o fascínio que os vilões exercem. Escuta e dá aquela moral pra mim e pro Darth Vader também, hahahahahaha. <3