Mulher-Maravilha 1984 foi só mais um evento lamentável de 2020
Pois é. Temos que admitir. Infelizmente. Ainda mais depois daquele primeiro filme…
Por GABRIELA FRANCO
Lembra daquele filme de 2017, dirigido por Patty Jenkins, sobre a super-heroína suprema da DC Comics e que, mesmo depois de 70 anos de sua criação, nunca havia ganhado um longa pra valer?
Aquele mesmo filme que teve arrecadação mundial de US$ 622 milhões, que foi o filme dirigido por uma mulher com melhor performance nas bilheterias até então? Aquele que se tornou um bastião de representatividade feminina, quebra de estereótipos e exemplo de valores e ideais feministas para milhares de mulheres e meninas que nunca tinham visto uma heroína daquele porte nas telonas?
Lembra? Eu também. Pois agora esqueça.
Infelizmente, Mulher-Maravilha 1984, também dirigido por Jenkins, que estreou dia 17 de dezembro nos cinemas brasileiros e dia 25 de dezembro mundialmente nas telonas dos EUA e via streaming no HBO Max, pega o primeiro filme e TUDO o que ele conquistou e joga no lixo.
Como esta aqui não é exatamente uma resenha, mas sim uma ANÁLISE, achamos por bem informar que se trata de um texto com SPOILERS. Então, tome aqui o seu aviso com destaque considerável para depois não dizer que não foi avisado…
!!!! SPOILERS DE MULHER-MARAVILHA 1984 !!!!
Bem, vamos começar elogiando, não é mesmo?
A direção de arte, figurino e trilha sonora, todos inspirados nos anos 80, estão maravilhosos. Tudo é muito néon e colorido, as calças clochard estão em todas as cenas, as mangas bufantes, ternos de jaquetão de 4 botões AND OMBREIRAS também marcam presença, além de muito synthpop na trilha.
A sequência de abertura é bem animadora e parece que vai entregar uma aventura gostosa com cara de Sessão da Tarde, as cenas do shopping também lembram levemente os filmes adolescentes de John Hughes, delícia, finalmente um filme de herói pós-origem que vai valer a pena! Sorriso no rosto, maior climão de Superman do Richard Donner.
Mas eis que a festa vira um enterro com um plot que vai do nada para lugar algum e uma sucessão de clichês que tornam a ambientação nos anos 80 REAL DEMAIS, eu diria, inclusive nos estereótipos e pitadas de MACHISMO. Não é porque um filme é ambientado nos anos 80 que precisa reproduzir todo preconceito da época, né?
A narrativa começa mostrando a vida profissional de Diana Prince (Gal Gadot), que trabalha no renomado museu Smithsonian em Washington DC. Ela é uma especialista em antiguidades, muito blasè e na dela, tanto que não faz A MÍNIMA questão de saber que tem como colega a renomada doutora em antropologia e historiadora Barbara Minerva (Kristen Wigg, ótima).
Minerva é – e daí esbarramos no primeiro clichê – aquela nerd que é superinteligente e capaz mas é insegura, estabanada, confusa, sem graça e que se veste mal. Uma tentativa ridícula dos roteiristas de fazer uma mulher branca padrão parecer FEIA.
Diana só vem a saber da EXISTÊNCIA de Barbara porque um artefato raro, fruto de um roubo internacional que o FBI está investigando, precisa da análise dela. Trata-se de um cristal incrustado em uma base com dizeres em latim, que aparentemente tem o poder de conceder desejos. Qualquer um, para quem pedir, simples assim. Diana se aproxima da “amiga” por puro interesse na peça. Isso fica tão claro que se torna até vergonhoso…
Surge o vilão. Ou quase.
Também somos apresentados a um terceiro elemento aí, o que só acaba tornando tudo muito abarrotado e rocambolesco, apesar de ser, de longe, o personagem mais bem trabalhado da história: Maxwell Lord (Pedro Pascal, deliciosamente canastrão), um executivo do setor de petróleo que também está atrás da pedra para dominar o mundo. Quer dizer… a gente acha que é isso. Porque, de verdade, o plano dele NUNCA fica claro.
Portanto, a trama gira em torno desse item mágico, que chama a atenção de todos – mas Diana fica meio obcecada com ele porque, vejam só, dentre TODOS OS DESEJOS QUE UMA HEROÍNA DO PORTE DELA PODERIA VIR ELA FAZER, ela deseja finalmente, e bem-vindo ao segundo clichê, TRAZER DE VOLTA SEU AMOR QUE MORREU HÁ SETENTA ANOS!
A decisão, aliás, ela toma em uma cena digna de novela do Manoel Carlos: sentada em um restaurante, tomando um vinho, quando um garçom a questiona… “Está esperando alguém, senhora?”. Então, ela olha para a cadeira vazia à sua frente e responde com olhos marejados: “Não, não estou”. E o garçom retira a louça… enquanto pequenos violinos tocam ao fundo (brincadeira, essa parte não acontece. Mas poderia).
Aparentemente Diana Prince, a Mulher-Maravilha, filha de ZEUS e Hipólita, a mulher mais poderosa do mundo, que inclusive nem heterossexual é (mas talvez muita gente não esteja preparada para esta conversa), NÃO SE SENTE COMPLETA PORQUE NÃO TEM NENHUM, SIMPLESMENTE NENHUM, MACHO NO MUNDO PRA JANTAR COM ELA! ORA VEJAM!
Enfim, todos fazem SEUS desejos.
Minerva fica obcecada em ser Diana, já Diana fica obcecada em trazer Steve Trevor de volta, e, BAM, ele volta. De uma forma ESQUISITÍSSIMA que os roteiristas acharam para não transformá-lo em zumbi: seu espírito toma O CORPO DE OUTRO HOMEM. E aí esbarramos em um problema sério de CONSENTIMENTO: um homem desconhecido “incorpora” Steve Trevor, tem relacionamentos sexuais com uma mulher (e se ele for homossexual, assexual?), tem sua vida colocada em risco nas cenas de ação, mas não faz A MÍNIMA IDEIA disso. Diana só enxerga o amado (e o espectador também), mas o cara é só um corpo que vai ser descartado à revelia no meio do filme.
A partir da apresentação da narrativa central, a coisa toda degringola vertiginosamente. Esqueçam a contagem de clichês porque eles simplesmente saem do controle. Pra começar, Steve Trevor atua bastante nas PRINCIPAIS cenas de ação com Diana. Até aí, nada demais, mas ele divide um tempo ENORME de tela com ela, tirando seu protagonismo. Um sidekick é um sidekick. Não estava preparada para ver um filme da MULHER-MARAVILHA coestrelado por Steve Trevor.
Não vemos Lois Lane ou a garota da vez do Batman socando os vilões com eles nas cenas centrais. Sidekicks ajudam em OUTROS ÂMBITOS, não nas cenas onde o herói deve BRILHAR. Steve Trevor não tem SERVENTIA ALGUMA no filme, para a narrativa central. MM não precisa dele. Nenhuma mulher precisa de um homem para NADA. Ainda mais se tratando da Mulher-Maravilha.
Vejam bem, não sou contra o romance e nem acho que uma mulher poderosa e bem-sucedida não possa ter um relacionamento. Na real, ela pode e deve. Isso é saudável, faz parte da vida, somos seres sociais. Mas ter ou estar em um relacionamento não é crucial para sua identidade ou existência. Mulher-Maravilha é um modelo de poder e autossuficiência, retratá-la carente e cega de amor da forma como fizeram foi deveras frustrante. Foi praticamente uma distorção da personalidade dela. E daí chegamos à triste conclusão de que o filme da Mulher-Maravilha NÃO PASSA no Teste de Bechdel.
Calma que ainda piora
Enfim, temos uma sequência com o avião invisível totalmente gratuita e que não faz O MENOR SENTIDO (o jeito que acontece faz você se perguntar “quê” muitas vezes depois, requerendo MUITA suspensão da descrença pra acreditar) e, pois então, Max Lord se apodera da pedra e, pior, se TRANSFORMA NELA (dafuck?). Por qual motivo ele resolve começar a conceder desejos ao invés de pedir “quero ser o homem mais poderoso do mundo” ou algo assim, é algo que me foge. Até porque, para realizar seus desejos, ele precisa que os outros peçam por ele. Ou seja… O fato é que o sujeito começa a conceder desejos a TODOS OS QUE CRUZAM O SEU CAMINHO, transformando o mundo num CAOS. Me lembrou daquela cena de “Todo-Poderoso” quando Jim Carey, com o poder de Deus, digita “SIM” para todas as orações e o mundo vira uma zona.
Já Barbara Minerva, a outra vilã, é movida pela INVEJA de Diana. Começa a ter raiva dela porque esta foi agraciada com beleza, poder e ela, por outro lado, acha que nunca teve nada disso e ninguém a ama. Em uma cena bizarra, que eu vejo como a ÚNICA ligação entre “leopardo” e sua transformação, ela olha para o sapato de animal print de Diana e fala “eu quero ser selvagem”. Oi? Assim mesmo, no modo aleatório, ela vai se transformando na Mulher-Leopardo. Ela podia ter virado um lobo, um guaxinim, um diabo-da-tasmânia… Todos esses animais são “selvagens”. Mas pelo jeito ela tinha apostado no leopardo no jogo do bicho, vai saber?
Existem pelo menos três origens diferentes pra Mulher-Leopardo nas HQs, Pós Crise, Novos 52, Renascimento… Eles foram escolher a PIOR delas, a da Pré-Crise, a história original de 1943 na qual a vilã é a personificação da inveja. Fora que, depois da transformação completa, sua caracterização fica ridícula, parecendo um gato do desastroso longa “Cats”.
Minerva quer destruir a Mulher-Maravilha quando esta percebe que, para acabar com a MERDA QUE FEZ, precisa fazer com que todos os que fizeram desejos através de Lord RENUNCIEM SEUS DESEJOS.
Era aqui que eu queria chegar
Isso é MUITO simbólico em um filme da Mulher-Maravilha e quero fazer um reforço aqui.
Se você é homem e não tem o mínimo de empatia, provavelmente não vai pegar o sentido disso (nem de metade das coisas que pontuei aqui). Mas veja bem – em um mundo patriarcal no qual a mulher é privada de muitos de seus sonhos, onde o acesso a todos eles é muito mais difícil, extenuante, e desafiador, onde o trabalho para provar que ela é capaz, merecedora, competente ou LIVRE é muito mais complicado, RENUNCIAR AOS DESEJOS era tudo o que uma mulher já faz. Muitas vezes mulheres simplesmente desistem de tentar porque o sistema é TÃO OPRESSOR que nos exaure, nos deixando sem forças para lutar.
Portanto, é inaceitável que uma heroína que é o símbolo do poder e da luta das mulheres tenha que pedir que renunciemos aos nossos sonhos, por mais que isso fizesse parte do contexto confuso do filme. Foi alegoricamente MUITO pesado. Fora que a situação ganha dimensões mega injustas. Sabemos que o mundo é uma merda e que a grande maioria das pessoas faria apenas desejos fúteis, egoístas, violentos. Mas existem cenas que mostram indivíduos desejando a cura de doenças em um leito de hospital, por exemplo. Pedir para que pessoas renunciem à própria vida colocando na mesma balança uma mulher que abriu mão de manter a vida do seu crush é totalmente desproporcional. Melhore, Diana.
O final é piegas e TOTALMENTE confuso. Não dá nem para explicar via texto. A MELHOR coisa do filme é a cena pós-créditos. Essa SIM fez os olhos brilharem.
Defendemos tanto o contexto político em filmes de heróis, por que justo no caso da Mulher-Maravilha, que carrega o peso de ser a maior representante dos valores feministas na cultura pop, tudo precisa ser tão estereotipado? O primeiro filme foi TÃO BOM nesse aspecto! Teve humor, amor e representatividade na medida certa. Este segundo filme é praticamente uma paródia do primeiro.
Tínhamos tantas expectativas! Por que, pra começar, simplesmente não fizeram uma MM bissexual – ou pelo menos sem interesse amoroso algum?
Uma mulher NÃO PRECISA ESTAR EM UM RELACIONAMENTO PARA SER COMPLETA. Ela pode sim, ser feliz sozinha e se bastar.
Quando nem a Mulher-Maravilha consegue e ainda alimenta estereótipos que tanto lutamos para combater, nós, meras mortais e fãs, nos sentimos totalmente sem esperança. MM 84 foi a gota d’água neste malfadado ano de 2020.
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