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10 dias, 8 edições e 1 heroína

Batemos um papo com o queridíssimo Sam Hart a respeito de sua saga, que vem sendo financiada capítulo a capítulo no Catarse e agora chega à sexta edição cheia de ação e magia

Por THIAGO CARDIM

Se tem um sujeito que é praticamente uma unanimidade no meio dos quadrinhos independentes aqui no Brasil, este alguém é o Sam Hart. É o cara cujo rosto deveria estar no dicionário ao lado do verbete “gente boa” – que, se não existe, deveria existir. É o cara que todo mundo quer cumprimentar nos becos de artistas dos eventos, cujos trabalhos geralmente queremos conferir e que os jornalistas especializados amam entrevistar… Logo, foi inevitável pra mim começar a acompanhar assim que ele lançou a primeira edição da sua 10 Dias Perdidos.  

Pra quem não conhece o Sam, ele se apresenta, não necessariamente nessa ordem, como autor de quadrinhos; artista de storyboard para filme e publicidade; ilustrador para livros e revistas; professor de anatomia, storyboard e narrativa visual; vegetariano; judeu; ateu; budista; anglo-brasileiro; hippie; filho de hippie; apreciador de blues e rock n’ roll; entusiasta da ciência; fã de grandes ideias e cidades pequenas; marido e pai. Fala aí se você já não queria ser amigo dele? “Leio e faço quadrinhos desde que me conheço por gente, que já faz um bom tempo. Publiquei na Inglaterra, EUA e Brasil, tanto trabalhos encomendados quanto autorais”, conta Sam, em papo exclusivo com o Gibizilla.

O Sam já desenhou Starship Troopers, Judge Dredd, Power Rangers, Robin Hood, Rei Arthur, Hamlet, O Guarani… Ah, sim, e também um pequeno projeto que virou filme, Atômica, um com uma moça aí meio desconhecida chamada Charlize Theron. Mas, atualmente, o artista tá escrevendo e desenhando um projeto totalmente autoral, os 10 Dias Perdidos, sobre os quais falei lá em cima, uma minissérie em 8 edições totalmente financiada pelo Catarse – cujo sexto número, aliás, acabou de receber a quantidade de apoios para se tornar realidade (#euapoiei).

“Aqui, estou colocando tudo que aprendi ao longo dos anos em termos de narrativa visual, criação e arcos de personagens, além de alguns temas me interessam atualmente, como ciência, magia, fascismo e outros que sempre estiveram nas minhas HQs, como conquista da autonomia”, explica ele.

Conhecendo os 10 Dias Perdidos

A história é ambientada em 1582, quando foram pulados 10 dias na mudança do calendário Juliano para o Gregoriano. Então, a trama conta o que aconteceu nesse espaço de tempo: em um mundo onde sobrenatural e ciência se confundem, humanos e deidades estão sendo congelados e Sophya Brahe, uma jovem astróloga, tem menos de 240 horas para atravessar a Europa e salvar toda a magia e a própria humanidade.

Ao pesquisar sobre outros projetos em que estava trabalhando, o autor encontrou essa curiosidade histórica, sobre a mudança do calendário, que rolou MESMO, e ficou com aquilo na cabeça. Mas ele só juntou lé com cré algum tempo depois.

“Achei muito interessante como o roteirista Tony Lee, com quem eu estava trabalhando nos projetos históricos de Robin Hood, Excalibur, Joana D’Arc e Grace O’Malley, incluía sempre um aspecto mágico nas HQs, de acordo com a época. Anjos, espíritos, fadas etc. Pensei no seguinte: e se todas as religiões e mitologias estivessem certas e suas entidades existissem ao mesmo, na Terra, junto com seres humanos?”, conta. Ele lembra que, sim, Neil Gaiman explorou mais ou menos essa mesma ideia em Deuses Americanos, assim como Douglas Rushkoff na HQ Testament. “Mas pensei que poderia dar uma aventura interessante, inserida nesses 10 dias esquecidos, misturando personagens ficcionais e históricos”.

O Sam parece estar curtindo, no fim das contas, a natureza episódica da narrativa – quase como que retomando a época áurea dos gibis mensais de heróis e afins, mas desta vez tendo a garantia da tiragem de cada número vendida. “Estou me divertindo fazendo cada mini-arco das edições, com começo, meio e fim em cada capítulo, e esse final também tem que ser um gancho para a edição seguinte”, confessa.

E ele completa: “Como não sou uma editora, ter o Catarse como opção para garantir o custo da impressão através da pré-venda é excelente. Sou da época em que a gente imprimia e não fazia ideia se ia vender o suficiente – e mesmo quando esgotava a tiragem toda, isso levava meses, muito depois de ter tido os gastos com gráfica, divulgação etc”.

Mas, antes que você pergunte, pois é, eu perguntei – e sim, mais pra frente, ele pensa em lançar a série toda como um encadernado. “Foi planejado como uma graphic novel, do mesmo tamanho e formato que o Atômica. Mas primeiro tenho que terminar a HQ, fazer cada edição ficar o mais bonita possível, desde a capa até os extras, e possivelmente elaborar uma caixa para quem quer guardar suas revistas juntas”, diz. Aliás, essa caixa talvez seja uma recompensa ou meta adicional na campanha do capítulo 8. “Depois disso, verei a viabilidade de lançar o encadernado, via Catarse ou com uma editora”.

Aliás, o final tá chegando, né!

Com a edição de número 8 mais próxima do que nunca, Sam diz que a HQ segue um caminho razoavelmente linear, tanto fisicamente no caminho da Sophya através da Europa, quanto no roteiro também. “Uma vez que todas as peças estão no lugar, quem sabe quais são essas peças, como o autor, entende que o desfecho é quase inevitável”, afirma, para quem talvez esteja esperando uma grande surpresa no encerramento.

O quadrinista explica ainda que o grande lance de fazer HQs, ou simplesmente contar histórias, passa por esse trabalho duplo: você precisa colocar as peças importantes claramente dentro da narrativa e, ao mesmo tempo, como só você sabe como a história termina, precisa ter certeza que está colocando essas peças na ordem certa, sem buracos no encadeamento, como dominós.

Mas depois de tanto tempo dedicado a este projeto, será que ele vai REALMENTE conseguir abandonar a Sophya na última página da oitava edição? Ou teremos outros planos dentro deste mesmo universo? “A aventura tem começo, meio e fim”, declara. “Só comecei a desenhar quando sabia exatamente o que vai acontecer na última edição”. No entanto, A-HÁ, sim, ele já pensou em algumas histórias que podem se passar no mesmo “universo”. Mas as ideias teriam que entrar na fila. “Tenho dois projetos esperando para acontecer na sequência, um meu, outro com um colega”. Bom, a gente espera. ¯\_(ツ)_/¯ 

E por falar em planos com 10 Dias Perdidos…

Depois do sucesso do filme com dona Charlize, dizer que ele é o Sam Hart de Atômica não ajuda a vender os projetos solo? “A resposta é sim e não”, dispara ele. “Com certeza ter o filme Atômica no currículo chama a atenção, e essa atenção às vezes leva a projetos novos. Mas não fez tanta diferença quanto você poderia achar. Eu mesmo pensei que iam chover propostas de trabalho, e todas as portas nas editoras iam magicamente se abrir, mas nada disso aconteceu”.

Para ele, algo deste porte pode ajudar a mostrar a cara, mas o que vai garantir que o leitor vai ficar é a qualidade do trabalho. “No caso de 10 Dias Perdidos, pode até chamar a atenção que é de um dos autores de Atômica, mas quem lê 6 edições de uma série é porque está gostando da história”. Bom, tá aí, EU pelo menos tô gostando. 😉

Mas, com Atômica no currículo, não sei, talvez não dê pra ver potencial numa espécie de adaptação pra série, filme, sei lá… Bom, aí o Sam me responde com uma história divertidíssima. Porque ele revela justamente que o que o levou a escrever 10 Dias Perdidos foi uma reunião com alguns produtores em Hollywood. “Não é tão emocionante quanto parece: eu nem sabia que ia ter a reunião”, diverte-se. Foi quando estreou o Atômica – ele e o Antony Johnston (roteirista do gibi original) foram pra estreia em Los Angeles e, um dia antes da exibição, o produtor convidou a dupla para o que eles acharam que seria um almoço.

“Na verdade, era uma reunião para falar de todos os projetos autorais que o Antony já tinha publicado: Umbral, Wasteland, Julius, The Fuse e outros. Nem teve almoço. Saí da reunião com fome de comida e fome de fazer meus próprios projetos, para ter o que falar caso desse sorte de cair em outra reunião dessas!”, completa.

Tá coberto de razão, o senhor Hart. Reunião sem comida, nem de longe. Mesmo quando quiserem te chamar pra falar sobre seus projetos (e espero que seja LOGO), faça questão de servirem pelo menos um pão de queijo. É o mínimo, pô.

Dito isso, quer conhecer mais do trampo de Sam Hart? O site dele é este aqui e você pode comprar 10 Dias Perdidos na Ugra Press.