Independência e resistência com os quadrinhos de Aline Zouvi
Quadrinista, ilustradora, cartunista, professora, ela é uma espécie de exército de uma mulher só no underground nacional, interessada em criar pontes entre gibis e outras linguagens artísticas
Por THIAGO CARDIM
Quando tive a chance de ler Síncope, de 2017, um quadrinho lindo de 64 páginas que narra um dia na vida de uma personagem que tem ansiedade, desenhado com giz pastel oleoso numa técnica que eu ADORO, confesso que não sei o que mais me surpreendeu – o resultado final daquela publicação experimental totalmente independente ou o significado de “independente” na vida de sua autora, Aline Zouvi, uma carioca que mora em São Paulo.
Quadrinista, ilustradora, cartunista (com trampos que podem ser vistos na Folha de S.Paulo e na revista Piauí, entre outros), poeta e professora, recentemente ela começou a trabalhar na área editorial, com tradução e revisão de quadrinhos. Mas, além de tudo isso, ela ainda é o exército de uma mulher só que costuma cuidar do processo inteiro de suas obras, do começo ao fim. “Eu tento me organizar o máximo que eu posso no meu processo de trabalho, para seguir uma sequência, umas etapas”, explica ela, em papo exclusivo com o Gibizilla. “Por exemplo, eu preciso sempre fazer cronogramas de produção para entender quanto tempo vou levar em cada etapa e em que prazo vou conseguir concluir, com base na minha velocidade, em quantos trabalhos eu vou ter que administrar ao mesmo tempo. Se estou trabalhando em parceria com alguma editora, qual é o prazo esperado por cada editor…”.
Em resumo, tudo começa com muito planejamento, que engata num bom período de pesquisa e que só depois faz com que ela passe para a elaboração do roteiro. “A partir do roteiro, faço uma revisão da história, tento entender se os pontos tão bem amarrados, desenho os rafes (rascunhos) e aí costumo ir deles direto para a página final, desenhando à lápis mesmo”, diz. “O storyboard é uma etapa também, mas acabo fazendo no próprio espaço onde estão as artes finais. Faço toda a arte à mão, me dou melhor com processos analógicos. Até os balões eu desenho à mão, se possível até o letreiramento eu faço manualmente, e aí só vou finalizar a edição no computador”.
Mas calma que não acabou, porque depois ainda tem o processo impressão, distribuição, marketing, a divulgação em feiras e redes sociais… “Por isso eu tendo a chamar meus quadrinhos de independentes. Mas o meu critério pra usar este tipo de caracterização é a diferenciação de um trabalho mais industrial. E isso não impede que eu venha a trabalhar com editoras em algum momento”.
Para conhecer a Aline
Além do próprio Síncope, que eu mesmo já indiquei no começo deste texto, finalista do HQ Mix e vencedor do prêmio Dente de Ouro na categoria quadrinhos em 2018, ela indica dois outros títulos que ajudam a compreender bem o caminho que segue seu estilo. Um deles é Óleo Sobre Tela, número 17 da coleção O Grito, da Ugra Press. É uma narrativa bem curtinha e sem falas sobre duas mulheres que se conhecem numa exposição do pintor surrealista belga René Magritte. “É um quadrinho quase feito como uma homenagem a ele – e expressa meu interesse de conectar as HQs com outras linguagens, como as artes plásticas. Estudar como podemos construir estas pontes”.
A outra obra é a recente Pão Francês, que saiu em 2019 pela Editora Incompleta, uma mistura de quadrinhos e diário de viagem ilustrado. “Tentei explorar uma linguagem mais leve, mais bem-humorada, explorando as diferenças culturais entre o Brasil e a França. Ele mostra dois períodos em que estivesse no país e quais as minhas percepções sobre ele”, conta Aline a respeito de mais uma mistura de narrativas que curte fazer.
Longe daquele traço que tradicional a gente relaciona com gibis, fora de escolas tradicionais como as de super-heróis ou de mangás, ela busca construir narrativas que trabalhem em certo nível com visibilidade. “Não vai se pautar apenas nisso, mas vai passar por isso. Principalmente feminina, LGBT, tento tratar um pouco de questões relacionadas à saúde mental e mais recentemente gordofobia”.
Dar voz também é resistência
Na realidade em que vivemos atualmente, Aline considera que fazer quadrinhos retratando pessoas LGBT e demais minorias é sim um ato de resistência. Afinal, segundo ela, os quadrinhos enquanto produção cultural não estão separados do restante da sociedade e estão completamente integrados à nossa vivência de forma política. “É até absurdo a gente ter que relembrar que quaisquer quadrinhos são políticos porque qualquer produção humana é política. Representar uma minoria é resistência porque é mostrar algo que se tenta apagar, não só no Brasil, mas em um contexto ocidental”.
Em retrospecto, analisando o cenário de quadrinhos para as mulheres que PRODUZEM gibis, a artista acredita que as coisas estão muito melhores, mas ainda tem muito a ser melhorado. “O que eu costumo frisar quando falo sobre estas questões é sobre a necessidade de se ter mulheres em posição de poder, em posição de decisão. Quanto mais mulheres a gente puder ter em decisões editoriais, de prêmios, ou em análises para editais, eu acho que mais vai se abrir a possibilidade de uma análise justa para autoras ou alguém em algum tipo de minoria”.
Ela afirma que, não, isso não resolve o problema de uma vez. Mas contribui pro aumento da visibilidade, desenvolvimento de trabalhos e ampliação de público. “Isso chega até em mesas de discussão que envolvam mulheres e permitam que elas possam falar sobre o trabalho delas, sua própria obra, e discutir temas de seu interesse. Pode parecer muito básico mas ainda não é cumprido”, opina. Para Aline, a popularização das redes sociais ampliou o alcance destas mulheres, mas ainda é preciso que elas continuem buscando estes direitos.
E sobre o futuro?
Apesar de trabalhar 99% do tempo sozinha, a Aline obviamente não exclui a oportunidade de trampar a quatro mãos. “Boa parte das quadrinistas brasileiras de hoje são artistas que eu admiro bastante e ficaria muito feliz de fazer qualquer parceria”, diz. “Alguns nomes são Vitorelo, a Lalo, Amanda Miranda, Jessica Groke, enfim, é uma lista grande, é difícil eu conseguir abarcar todo mundo”.
No momento, ela está experimentando um pouco desta coisa de produzir coletivamente no projeto C.E. Safa, iniciativa ao lado de outras quadrinistas publicando despretensiosamente no Instagram, como bem cabe neste momento de quarentena eterna em que vivemos. Mas já tem novidade no ar – trata-se do zine Tradução Simultânea, parceria com a editora Sapata Press, que é coordenada pela Cecilia Silveira, lá em Portugal, e que foi lançado oficialmente no último final de semana, durante a CCXP Worlds. Conforme descreve a estudiosa e especialista em HQs Maria Clara Carneiro, “Aline nos desenha esse caráter duplo do tradutor, esse agente que, mesmo nos automatismos do trabalho com a linguagem, se coloca como segunda voz do outro, encarna o outro em seu nome – e busca desaparecer, para dar espaço a ele, que mal ou nem o vê”.
Já para o segundo semestre do ano que vem, Aline está produzindo a graphic novel Pigmento, sua primeira neste formatão, que vai sair pelo selo Quadrinhos na Cia. Veremos uma Aline ainda bastante independente, falando sobre amor e gênero pelo universo da tatuagem, mas com chance de ganhar muito mais visibilidade ao ser lançada por uma estrutura tão grande, como ela bem merece.
Para conhecer mais sobre o trabalho dela, acesse o site que tem lojinha e tudo mais.