Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

A fina e controversa arte de dar títulos em português para os filmes

Sim, tem alguém fazendo isso. Sim, estas pessoas realmente existem. E eu sou uma delas. Ou pelo menos fui, né.

Por THIAGO CARDIM

Durante algum tempo, preferi me manter publicamente em silêncio. Comentava sobre o assunto apenas com alguns amigos mais próximos. Justamente porque sabia a reação que causava esta revelação toda vez que eu contava para alguém novo. Eis que, então, resolvi me revelar. Mas que isso fosse de um jeito leve, divertido…

Durante cinco anos, trabalhei numa distribuidora de cinema aqui no Brasil, responsável por trazer filmes gringos para os nossos cinemas.

Eu era redator (entre outras funções, mas não vamos entrar neste mérito) da agência que a empresa mantinha internamente. E como redator, eu cuidava dos textos de todos os anúncios publicitários, em todas as plataformas (TV, rádio, revista, jornal, internet). E uma das minhas atribuições também era…

…senhoras e senhores, que rufem os tambores…

…criar os títulos dos filmes em português.

Sim, amiguinhos, existe uma pessoa responsável por este trabalho que vocês tanto adoram tripudiar. E eu era uma destas pessoas.

Vou dar meu currículo aqui, pra vocês sacarem. Shoot ‘Em Up virou Mandando Bala por minha causa. A History of Violence transformando-se em Marcas da Violência, também é coisa minha. Eastern Promises sendo rebatizado como Senhores do Crime, é isso, culpado. Wedding Crashers passando a ser chamado de Penetras Bons de Bico? Pode botar na minha conta. E também tenho culpa em uns lançamentos menores, tipo Spymate – O Agente Animal e Bud – Uma Nova Cãofusão.

Foram quase cinco anos trabalhando nisso, pega leve.

Antes de qualquer coisa, preciso dizer que, tá bom, pode ser que vocês não acreditem em mim, mas na distribuidora na qual eu trabalhava, a primeira opção era sempre manter o título original ou uma tradução literal. Eu garanto, prometo, juro. E era sempre a minha opção nº 1, de uma lista com 20 ou 30 diferentes para que todo o departamento de marketing pudesse votar nas suas favoritas. Mas acreditem e reflitam, em muitas ocasiões, as traduções literais não fazem sentido. Sério!

Isto porque algumas piadas, tiradas, sacadas simplesmente não cabem no nosso idioma. Lembram de Monster-in-Law, com a Jane Fonda e a Jennifer Lopez? É um ótimo trocadilho com “mother-in-law”, mas não tem forma de levar isso para o português sem perder o charme original. Eu fui o responsável, neste caso, pela solução mais simples – A Sogra. Pode até ser que A Origem não tenha sido a melhor escolha para a tradução/adaptação de Inception. Mas pense que a distribuidora tinha que levar para o cinema não apenas aqueles que sabiam que o filme era do Nolan, que conheciam sua história e o conceito, mas sim aquela maioria de espectadores eventuais que conhecem o DiCaprio e que viram o pôster no cinema. Isso sem falar que alguns dicionários dão a tradução de “inception” como sendo “princípio, começo”. E aí? Qual seria a saída?

Eu sempre tentava a tradução literal e depois discorria em uma série de sinônimos, junções de palavras, expressões que significassem a mesma coisa. Aí, se era muito complexo, buscava talvez algo em uma frase de efeito dos diálogos, por exemplo, que pudesse tentar ajudar a vender melhor a trama. Ou quem sabe algo na sinopse. Ou então na tagline original – sabe aquela frase de efeito do pôster do filme? Por vezes até trocava ideia com os distribuidores do filme em outros países, para ver que ideias eles tinham.

E sempre, sempre e SEMPRE checava, legalmente, se tinha algum filme, peça de teatro, livro ou gibi nacional registrados com o MESMO nome. Justamente para evitar aquele bom e velho processinho.

Momento tiozão do pavê

No caso das comédias, é claro que é preciso uma dose cavalar de humor para batizar os filmes. Até porque o que é humor para os americanos, para os ingleses, para os franceses, não é necessariamente humor para os brasileiros. Existe um abismo de diferença. Mas vou fazer agora uma revelação que pode chocar a muitos de vocês.

Insira aqui a sua vinheta dramática.

Um filme é um produto, assim como um CD, uma HQ, uma peça de teatro. O fato de ser algo cultural não faz com que deixem de ser produtos. E por isso precisam ser vendidos, dar um mínimo de retorno financeiro. É capitalismo que chama.

E como acontece com qualquer produto, de desinfetantes a margarina, eles precisam ser batizados de uma forma “vendável”, como parte de uma estratégia de marketing. E esta estratégia leva em consideração o público-alvo e todas as suas principais características. É óbvio que isso vai variar muito de filme para filme, de público para público e, claro, de empresa para empresa.

Cada distribuidora acaba desenvolvendo também os seus critérios muito particulares. Mas o título tem que VENDER o filme – e isso significa que ele precisa ser vendável não apenas para os malucos por cultura pop como nós, que ficam buscando e recebendo informações sobre cada produção, sobre aquele determinado diretor ou ator, sobre o livro no qual aquele filme foi inspirado. Mas tem que ser vendável também para a pessoa comum, que simplesmente viu o comercial na TV e pensou: “ah, este filme parece legal. Vou ver se rola de assistir no final de semana”.

Quando um filme como Vingadores – Ultimato leva um BAZILHÃO de espectadores aos cinemas, tenham em mente que os leitores de quadrinhos, os nerds, os geeks e afins são um percentual mínimo deste total. Acreditem em mim. E a maioria são pessoas que estavam em busca de uma boa aventura com efeitos especiais, e “ei, olha só, é com aquele cara do filme dos Vingadores!”. Stan Lee? Quem é esse? Joias do Infinito, Guardiões da Galáxia? Sei lá do que vocês estão falando…. Sacaram a diferença? 😉

Alguns exemplos práticos, então

É impossível deixar de lembrar aqui de O Poderoso Chefão – um título muito mais interessante e VENDEDOR pro público comum do que a tradução literal de The Godfather. Outra sacada incrível – Apertem os Cintos… o Piloto Sumiu! funciona muito melhor do que Avião, tradução de Airplane!. E a brincadeira com Police Academy, transformada em Loucademia de Polícia, é igualmente certeira e vende melhor a ideia do filme para um espectador eventual do que só Academia de Polícia, que pode dar a impressão de um filme de ação, sei lá.

Já me perguntaram como Hot Tub Time Machine virou A Ressaca, por exemplo. Por mais que a escolha em português não seja UAU, venhamos e convenhamos, A Máquina do Tempo na Banheira tem potencial zero de venda. E não, eu não estou dizendo aqui que as distribuidoras acertam sempre, porque na verdade, existem cagadas aos montes acontecendo, é claro. Mas é preciso tentar compreender esse fator mercadológico antes de apenas criticar a “não tradução literal”. Por exemplo, vocês podem ter odiado, mas eu achei Família do Bagulho uma tirada divertidíssima, e que vende muito mais a ideia do que Nós Somos os Millers.

Fala sério se este título não

ficou MUITO BOM?

Acreditem, a decisão é BEM mais complicada do que se imagina. Vou dar um exemplo recente, que causou muita polêmica nas redes sociais: o nome daquele filme do Seth McFarlane, A Million Ways To Die in The West, que aqui no Brasil virou Um Milhão de Maneiras de Pegar na Pistola. Agora, sem querer parecer do contra e sem entrar no mérito se o título ficou bom ou não, veja: eu JAMAIS aprovaria a tradução literal, Milhões de Maneiras de Morrer no Oeste. Não tem qualquer apelo no mercado nacional, que – não se esqueça – é formado por 98% de pessoas que simplesmente não sabem quem diabos é o Seth McFarlane e, portanto, jamais veriam neste nome uma motivação para ver o longa. Mais uma vez, caso não tenha ficado claro – filmes são para um público mais amplo do que especialistas em cinema, nerds e afins. E o título, pra vender este espírito de comédia, precisa ser mais engraçadinho mesmo. E, mais uma vez repito, não estou dizendo que gosto do título. Ou mesmo que concordo. Mas isso é marketing, meus velhos.

Aí, tem a questão do subtítulo – geralmente com um trocadilho infeliz. Cê sabe, Footloose – Ritmo Louco, Ghost – Do Outro Lado da Vida, estas paradas. Isso varia muito de distribuidora para distribuidora. Mas, sim, existem casos em que os departamentos de marketing são absolutamente resistentes a ter um título apenas e tão somente em língua estrangeira. Nem sempre os subtítulos são a melhor pegada, porque algumas vezes eles mais atrapalham do que ajudam, e sei que todos devem ter casos aos montes para citar. O grande problema, mais uma vez, é que estamos em um país no qual não se fala inglês. A gente pode até falar, mas não representamos a massa. E aí que a gente tem que se ater ao fato de que a grande maioria não fala. No fim das contas, cabe uma regra básica de que dá pra usar o título em inglês quando ele é sonoro. Matrix, por exemplo, é fácil de falar, mesmo para quem só fala português.

Todo mundo fala no fenômeno da ascensão da classe C, das pessoas que agora podem arcar com mais entretenimento, ter acesso fácil à internet, aos serviços de streaming, TV por assinatura (se bem que, né) e também a uma ida ao cinema de vez em quando (quando for seguro de novo, por favor). Vejo recorrentemente as pessoas reclamando de filmes dublados, tanto nos cinemas, quanto nos canais de TV por assinatura. E eu entendo. Mas já trabalhei tanto com cinema e com TV por assinatura e posso garantir que a demanda por filmes e séries dublados é dez vezes maior do que as reclamações. Juro! Não estou exagerando e as pesquisas comprovam. E é por isso que aumentou tanto a demanda por filmes dublados. E a audiência que eles trazem para a TV, e o público que eles levam ao cinema, só provam que isso deve continuar crescendo cada vez mais. É uma tendência, gostemos dela ou não. O tal público Tela Quente é hoje a maioria. E tem poder de consumo para ditar as regras do mercado, simples assim…

Uma tradução muito louca do barulho

Aí, claro, quando a gente fala em POPULARIZAR, impossível esquecer das expressões como “muito louco”, “do barulho”, “em apuros”, “numa fria”, “da pesada” e “pra cachorro”. Podem reparar que, nos dias de hoje, vocês vão ver uma diminuição considerável destes termos. Claro, admito, muitos deles foram usados à exaustão, em especial durante as décadas de 80 e 90. Eu mesmo usei bastante, especialmente em filmes lançados diretamente para o mercado de home video – que tinham um foco mercadológico mais escrachado.

Mas nos últimos anos, a tendência é ver estes termos caírem em desuso. Porque todas as variações possíveis acabaram sendo utilizadas. E aí ficou tudo repetitivo demais. É o caso, por exemplo, da expressão “tira”, que era muito recorrente para se referir a policiais, lembram? Ela apareceu nos estúdios de dublagem, porque era uma palavra pequena que cabia no espaço de tempo de leitura labial da palavra “cop”. Era complicado encaixar o termo “policial” enquanto o sujeito movia a boca para dizer “cop”. E assim surgiu “tira”. Mas quem diabos chama um policial de tira, sejamos honestos? Caiu em desuso. Creio que o mesmo vá acontecer com os outros termos. São como piadas velhas que foram perdendo a graça.

Por último, tem a coisa de um filme que é baseado numa série, numa história em quadrinhos, num livro. Seria LÓGICO que ele tivesse o mesmo nome do original, correto? Olha… até seria. Mas é bom que se explique que esta é uma regra que nem todo mundo segue. Justamente pensando no aspecto mercadológico, existem distribuidoras que optam por não usar o título do livro se ele for pequeno, nichado ou pouco conhecido no Brasil. O mesmo vale para HQs, séries de TV e etc. É uma posição discutível, eu sei. Mas que, se você levar em consideração que um filme é um produto, faz muito sentido.

Consegui fazer, por exemplo, Inkheart continuar sendo Coração de Tinta – mas tive que me submeter a um subtítulo, O Livro Mágico. Já no caso de A Bússola Dourada, lutei, briguei, esperneei, mas não teve jeito e a parada se tornou A Bússola de Ouro. É, eu sei. Os motivos, estes não posso revelar, infelizmente. Faz parte do jogo corporativo. Quando escrever minhas memórias, quem sabe eu conte. ¯\_(ツ)_/¯

PS – Não consigo explicar Se Beber, Não Case, perdão. Nem adianta perguntar.

Comments
  • Elton

    Gosto muito da adaptação Família do Bagulho e o subtítulo de Ghost: Do Outro Lado da Vida. Queria entender pq Winnie the Pooh (2011) manteve o título original, ainda mais numa animação.

    17 de dezembro de 2020
  • Amilton Maciel

    Ah vá, “Se beber, não case” ficou um título bem legal e bem de acordo!

    19 de dezembro de 2020
  • Rodrigo Baptista da Silveira

    Excelente texto, muito elucidativo. Mas ainda não consigo entender por exemplo Wayne’s World virar “Quanto mais idiota melhor” ou Tommy Boy virar “Mong & Loide” pra mim isso depõe contra os filmes, acho que mais afastam do que chamam o público.

    9 de agosto de 2021

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