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Ex-chefões da Marvel lançam uma nova editora de quadrinhos em plena pandemia

Com gibis operando num universo compartilhado, tipo Marvel e DC, a empresa chega com um time de peso — e um potencial porta-voz que tá longe de ser uma unanimidade no mercado americano

Por THIAGO CARDIM

“Nós queremos mudar o atual funcionamento da indústria dos quadrinhos”. É esta a mensagem-chave da Artists, Writers and Artisans, doravante conhecida como AWA, uma nova editora de quadrinhos que começou a dar as caras com bastante agressividade no mercado americano.

Numa entrevista ao jornal New York Times em 2019, o time executivo responsável pela empreitada relembrou que, nos EUA, existem essencialmente dois modelos: o das grandes empresas tipo Marvel e DC, com personagens icônicos e foco numa produção quase “industrial”, e aquele focado em criadores, autorais, tipo o acordo de um The Walking Dead com a Image Comics. A intenção é que a AWA esteja no meio do caminho entre ambos os modelos, permitindo um universo interconectado de personagens tipo as duas grandonas mas com possibilidade de séries únicas e fechadas como na Image. E, em todos os casos, com os criadores tendo participação financeira direta.

“O modelo aqui é aquele do antigo estúdio de cinema United Artists, no qual as pessoas que realmente estão fazendo o trabalho criativo têm o poder de decisão, o controle, sobre o trabalho que estão fazendo”, promete o CEO e publisher da AWA, ninguém menos do que Bill Jemas — quem manja um pouco dos bastidores do mundo dos gibis deve se lembrar da controversa figura que foi presidente da Marvel no comecinho dos anos 2000. Ao seu lado está o CCO (chief creative officer, como gosta a galera do mundo dos negócios) Axel Alonso, ex-Vertigo que acabou substituindo Joe Quesada como editor-chefe da Marvel de 2001 até recentemente, quando, em 2017, saiu para dar lugar a C.B. Cebulski. E aí temos, como a parte mais hard business da parada, Jonathan F. Miller no papel de chairman. Ex-executivo da News Corp. e cochairman do site de entretenimento Fandom, ele ajudou a mediar o acordo entre Mark Millar e o Netflix, por exemplo.

Tudo rolando com um aporte inicial de grana vindo diretamente da Lightspeed Venture Partners, empresa que foi uma das primeiras financiadoras do Snapchat — e apoio de ninguém menos do que James Murdoch, filho do magnata das telecomunicações Rupert Murdoch, aka o todo-poderoso chefão da Fox antes da Disney aparecer com as cifras.

“O que estamos oferecendo aos criadores é a oportunidade de arriscarem tudo em si mesmos sem colocarem tudo em risco”, explicou Alonso, revelando que sua folha de pagamento vai mesclar veteranos e novos talentos. A ideia é que eles possam ser pagos pela produção de seu trabalho, ao mesmo tempo em que podem ser donos de suas histórias/personagens ou ter um percentual da companhia. Ou mesmo ambos. Parece interessante.

Fica ainda MAIS interessante quando a gente descobre que eles têm uma espécie de conselho criativo para ajudá-los a desenhar este novo universo, formado por nomes como o do roteirista e diretor Reginald Hudlin (que já escreveu o Pantera Negra), Margaret Stohl (Capitã Marvel), Gregg Hurwitz (que já fez Batman, Justiceiro, Wolverine…) e dois outros caras que dispensam apresentações: Garth Ennis e J. Michael Straczynski. O último, aliás, cocriador de Sense8 pro Netflix, meio que vinha tirando um período sabático dos gibis. “Eu estava aberto a retornar às HQs se o projeto fosse algo desafiador. Quando Bill e Axel chegaram com a ideia de criar um novo universo de quadrinhos, me pareceu divertido demais pra resistir”.

Justamente por isso, é de Straczynski a criação da origem, o ponto de partida, para os heróis da AWA.

O primeiro gibi da editora, The Resistance, é escrito por Straczynski com arte do brasileiro Mike Deodato Jr. E adivinha só a história: um vírus misterioso mata milhões de pessoas ao redor do mundo, mas dá a algumas milhares delas um bocado de superpoderes. Este gibi deveria, claro, ser o ponto de partida para o universo compartilhado da AWA, todo mundo vivendo na mesma cronologia e podendo interagir entre títulos. Tudo muito legal, pelo menos na teoria. Mas como se não bastasse a trama se parecer muito com o que estamos vivendo hoje no mundo hoje (à exceção, pelo menos até onde sabemos, da parte das habilidades super-humanas), bão, o fato é que a HQ foi lançada em MARÇO. O que foi que começou em março mesmo? Pois é, uma pandemia global. E todos os mercados, inclusive o dos quadrinhos, viraram do avesso. Lojas fechadas, distribuição interrompida…

“Saber que The Resistance estava lá mofando nas prateleiras das lojas e as pessoas não podiam ter acesso a ele foi um pesadelo”, afirmou Alonso, em entrevista pro Business Insider. Mas, como estavam começando, os caras da AWA não tiveram medo de arriscar e lançaram o título como um gibi digital para ser baixado gratuitamente. O resultado foi que parte dos leitores já sabia bem do que se tratava quando as lojas começaram a reabrir, aos poucos, a partir de maio. “Temos que perceber onde existe uma oportunidade a ser descoberta numa crise”, diz ele. “As pessoas gostaram e, quando as lojas retomaram as atividades, eles voaram pra comprar. Leitores de gibis são o que a gente chama de fanáticos por completar. Só porque eles leram online não significa que acabem deixando de comprar a versão impressa pra ter a coleção inteira”.

O resultado da estratégia é que The Resistance cravou uma marca muito melhor do que qualquer um deles estava de fato esperando. Na lista de títulos mais vendidos do site Comichron lá no mês de março, por exemplo, o número 1 da série ficou em 65o lugar, com mais de 26.000 cópias vendidas. E isso se você considerar que dava pra baixar o diacho do negócio DE GRAÇA, olha só, parece mesmo um feito e tanto.

Até o momento, o que se sabia a respeito dos títulos iniciais (e, claro, com a pandemia isso pode mudar) é que eles começariam logo depois por American Ronin, escrito por Peter Milligan e com arte do ilustrador conhecido apenas como ACO, a respeito de um grupo de operativos altamente treinados trabalhando para grandes corporações. Aí teremos Bad Mother, da escritora especializada em adaptações cinematográficas Christa Faust, sobre uma mãe em busca de sua filha desaparecida (dá pra sacar o caminho que a parada vai seguir pela frase de efeito que o título usa, Baking Bad). E então Archangel 8, de Michael Moreci (Roche Limit), a respeito de um anjo desgarrado armado com uma metralhadora — se isso te lembrou de alguma forma a época do Justiceiro transformado em matador oficial a serviço do Senhor, talvez faça algum sentido.

AÍ, temos um OUTRO título aqui, cortesia de ninguém menos do que Frank Cho, sim, AQUELE do “ah, o mundo tá chato, o politicamente correto”, aquele mesmo que comprou a briga e se tornou o maior defensor da capa alternativa ultrasexualizada da Mulher-Aranha com a bunda empinada, feita pelo italiano Milo Manara; aquele mesmo que lançou uma dezena de desenhos, com o objetivo de “provocar” os chamados SJW da internet, com a Spider-Gwen, a Mulher-Maravilha, a Gata Negra e até a Princesa Leia com peitos e bundas gigantescos, explodindo em roupas e poses impossíveis. Cho será responsável por Fight Girls, que em tese é sobre “a competição pelo título de Rainha da Galáxia”. Não sei bem o que pensar. Ou melhor, até sei. Mas tomara que eu esteja enganado.

Este tipo de “polêmica” como ferramenta de marketing, totalmente proposital, aliás, talvez seja o que um cara como o Jemas realmente quer — afinal, ele tá mais do que acostumado com o expediente.

Que o cara foi, ao lado de seu braço direito na época, o editor-chefe Joe Quesada, um dos principais responsáveis por catapultar a Marvel rumo aos anos 2000 pós pedido de falência, quanto a isso não existe dúvida. Foi sob a gestão dele que vimos o Universo Ultimate, aquele que não apenas deu origem ao Miles Morales mas também inspirou total e completamente as versões cinematográficas, nascer. Também foi em seus anos na presidência que nasceu o selo MAX, de quadrinhos mais adultos, aquele mesmo onde vimos florescer Jessica Jones.

Foi Jemas que colocou Brian Michael Bendis sob os holofotes. Justamente a sua total familiaridade com as convenções enraizadas do mundo das HQs ajudou, em certos pontos, a tirar certos projetos impensáveis do papel, tipo a origem do Wolverine.

Mas também é inegável que tudo aconteceu em meio a um estilo bastante questionável de gestão de um advogado formado em Harvard que admitiu nunca ter lido gibis na vida antes de trabalhar na Marvel e que chegou na Casa das Ideias depois de seu trabalho na empresa de cards Fleer, comprada por eles. A começar pelo fato de que, diferente de seus antecessores, Jemas adorava um holofote. Apaixonado e fanfarrão, vivia dando apelidos estúpidos e incômodos pros funcionários, causando situações bem escrotas, conforme relata Bob Greenberger, um antigo editor da DC que o próprio Jemas levou pra Marvel em 2001, ao livro Pancadaria, de Reed Tucker.

Jemas escrevia uma coluna online na qual respondia as perguntas dos fãs e amava estar na imprensa, em especial quando podia aproveitar a oportunidade para provocar a DC — se a ideia era remontar aos tempos de CHISTES JOCOSOS de Stan Lee com a Distinta Concorrência, Jemas foi BEM mais longe porque sua pegada era mais agressiva e acabou quebrando um, digamos, “acordo de cavalheiros” que existia entre as duas editoras. De chamar a DC de “AOL Comics”, por conta da negociação da Time Warner com a America Online, a dizer que depois do sucesso do primeiro filme do Homem-Aranha, até a DC podia publicar um gibi do personagem que não estragaria sua reputação, Jemas cruzou os limites e chegou num nível pessoal. E com um alvo bastante específico na frente: Paul Levitz, na época o presidente e publisher da DC, um cara de perfil totalmente diferente, mais conservador, mais cerebral, que odiava este tipo de lavagem de roupa suja via imprensa.

Ele também arrumava tretas DENTRO da própria Marvel. Certa vez, colocou na cabeça que escrevia melhor do que Peter David, à frente do gibi do Capitão Marvel na época, e se meteu a escrever uma certo Marville, uma sátira do Superman cujo nome era KalAOL e que fazia ataques diretos a Levitz e também Ted Turner, executivo da Time Warner e lendário fundador da CNN — constrangedor, para dizer o mínimo. Junte a isso o fato de que ele começou a querer interferir no editorial da empresa de maneira direta, chegando inclusive a demitir o time criativo do gibi do Quarteto Fantástico porque eles não queriam seguir o caminho que o cara pretendia, além do fracasso que foi a tentativa de relançar o selo Epic Comics, pra entender porque Quesada se afastou dele e, logo depois, o sujeito acabou se afastando do cargo. Depois de algumas pequenas tentativas no mercado de gibis, agora ele tá de volta pra valer. E cheio de ambições.

“Sobre quem estamos escrevendo nossas histórias agora — e para quem? O que tentaremos dizer que seja relevante para um público contemporâneo?”, questiona-se Straczynski, ao lado de Alonso, a respeito do editorial da AWA, em comparação com as poderosas figuras de autoridade que surgiram na DC por volta dos anos 1940 e com os personagens anti-establishment que pintaram na Marvel ali em meados dos anos 1960. Foi isso que atraiu, por exemplo, um cara como Benjamin Percy para a AWA. Depois de passar por títulos como Arqueiro Verde na DC e pelo Wolverine na Marvel, ele vai escrever Year Zero e Devil’s Highway para a nova editora. “Escrever pra DC e pra Marvel é um privilégio e uma alegria, claro, mas também vem com restrições, porque você só tem a custódia temporária de um personagem que está por aí há décadas”.

Mas digamos que o foco de Jemas e Miller, o outro pedaço da linha de comando da nova editora, tá BEM mais à frente do que isso. “Eu acho que é justo dizer que hoje a Marvel é a franquia de entretenimento mais valiosa do mundo”, afirma Jon Miller, que depois do acordo entre Millar e Netflix, passou a enxergar se ali não existiriam oportunidades similares. Sacou qualé a ideia? “Uma das melhores coisas de se fazer negócios assim é que você vai experimentar um monte. Algumas coisas vão funcionar, você nunca sabe quando e onde, mas é parte da ideia”.

Basicamente? Vamos testar um monte de personagens aí. Se um estourar, como os outros estão conectados, a gente leva junto. E aí tentamos negociar um acordão de adaptações para o cinema/TV. Ou seja, a resposta pra pergunta do Straczynski tá aí. “Não importa. Desde que eles sejam facilmente adaptáveis”. 😉

E como Hollywood está aí mais do que faminta pelas chamadas IPs, as propriedades intelectuais, para poder transformar em filmes multimilionários, a missão da AWA atraiu grandes investidores — o primeiro deles, além de James e da Lightspeed, uma produtora chamada Sister, fundada por Elisabeth Murdoch (não por acaso, outra filha de Rupert). “Existe uma verdadeira corrida por conteúdo de qualidade entre Netflix, Amazon, Hulu e a própria Disney, por causa do Disney +”, afirmou Alex Taussig, sócio da Lightspeed Venture Partners, ao The Wall Street Journal numa matéria do ano passado. A afirmação faz AINDA MAIS sentido um ano depois.

“[James] Murdoch conhece HQs e respeita a nossa visão”, diz Alonso, tentando reforçar que a criatividade vem em primeiro lugar. “Ele ama que estamos dando poder aos nossos criadores, fazendo eles terem espaço neste jogo. Ele curtiu saber que vai rolar investimento nos criadores e viu potencial nisso”. Maaaaaaas, sim, já existem conversas com Hollywood, conforme Jemas e mesmo Percy confirmam ao Business Insider. Obviamente, eles se recusam a dar mais detalhes. “Uma das questões que a gente sempre encara com os estúdios é ‘que cara isso vai ter?’. Então você mostra o gibi pra eles e o projeto já tá quase todo em storyboard”.

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.