A bissexualidade em Estranhos no Paraíso
“Minha vida são paginas rabiscadas, rasuradas e mal determinadas ao entardecer. Se há algo que aprendi é que não se pode voltar atrás..nem podemos sempre ser felizes. Que, sem amor, não somos mais do que Estranhos no Paraíso“
Por GABRIELA FRANCO
(publicado originalmente no site Minas Nerds)
Estranhos no Paraíso, clássicos dos quadrinhos indie de Terry Moore, teve uma história de publicação conturbada no Brasil, como a maioria das HQs que tentaram emplacar por aqui, no final dos anos 90, começo dos 2000. Foi publicado por quatro editoras, mas nunca por completo : Abril (1998), Via Lettera (1999 e 2000), Pandora Books (2002 e 2003) e HQM (2006 a 2013). Em 2017, por fim, foi publicado na íntegra em formato digital pelo Social Comics. Nos EUA, foi publicada de forma independente, pela Abstract Comics, um selo do autor e indicada, mais de uma vez, ao Prêmio Eisner por melhor roteiro e artista revelação.
Mas eis que, em 2018, a editora Devir anunciou que iria trazer esse tesouro de volta ao Brasil e publicá-lo fisicamente por completo, em 6 volumes, capa dura, formato luxo (17 x 26 cm, 360 páginas). Nós podemos, finalmente, mergulhar em definitivo no universo fascinante de Francine e Katchoo na versão IMPRESSA.
Estranhos no Paraíso rescende à adolescência. À juventude e seus perrengues. Falta de grana, inadequação com família e sociedade em geral, muita letra de música, poesia e referências pop. Mas também fala de amizade, confiança, medo, demônios do passado que insistem em moldar nosso presente, escolhas, sexualidade e… crime.
No volume 1 – ” Um Sonho de Você”, somos apresentados aos três personagens centrais da HQ: Francine, uma menina fofa, espontânea, romântica e dedicada a todos que ama. E que também vive às voltas com inseguranças referentes ao seu corpo e em relação aos homens. Aposta muito em relacionamentos e tem a ideia convencional de que uma mulher só é completa se estiver em um bom relacionamento heteronormativo. Mas as circunstâncias da vida e sua amizade com Katina Choovansky, a selvagem Katchoo, vão fazê-la repensar tudo o que ela acredita ser verdade sobre a vida e o amor.
Já Katchoo é o contrário de Francine: descolada, estudante de arte, desbocada, metida a valentona, vive arrumando encrenca por ser muito esquentadinha. Guarda um ódio especial por homens, cujo motivo será revelado ao longo dos 6 volumes da obra, mas é neste contexto que surge David. Ele é um estudante e apreciador de arte que praticamente INVADE a vida de Katchoo e Francine. David se apaixona loucamente por Katchoo, que tenta se livrar de suas investidas a qualquer custo ao mesmo tempo que acaba se envolvendo com ele e revelando um lado bem obscuro de seu passado que vai abalar a vida de todos.
Mais do que essa trama toda bem amarradinha e gostosa de ler, que mistura comédia de erros, romance, drama e ação em uma mesma HQ, Estranhos no Paraíso foi uma das primeiras HQs a abordar, de forma deliberada, a bissexualidade e poliamor entre as personagens.
Tanto Francine quanto Katchoo se relacionam com homens e mulheres na trama. Na verdade, Francine descobre, sob o olhar do leitor, que o que sente por Katchoo é mais do que uma amizade, ao mesmo tempo em que percebe seus sentimentos por David crescerem. Já Katchoo tem certeza de que é apaixonada por Francine, mas será que consegue se relacionar com um homem depois de tudo o que eles a fizeram passar?
Esse descortinar da sexualidade feminina é feito de uma forma muito delicada e natural e, só por esse fato, EnP já vale ser lido e destacado.
A HQ foi muito importante para a descoberta e conscientização de muitos leitores na época e hoje se sustenta como um grande representante deste tipo de orientação sexual, geralmente invisibilizada e engolida pela homossexualidade e até de uma relação poliamorista, já que os três se envolvem e continuam juntos.
A narrativa de Terry Moore, tanto gráfica quanto textual, é muito dinâmica, sem deixar de ser poética. Splash pages e quadrinhos repletos de melancolia e reflexão coexistem com cenas bem violentas e de ação, sustentando magistralmente o interesse do leitor até a última página.