Até o Justiceiro acha absurdo ver policiais usando o seu símbolo
Não bastou os caras ouvirem o criador do personagem dizer. O próprio Frank Castle, em sua própria revista em quadrinhos, teve que dizer com todas as letras o quanto aquilo é ERRADO.
Por THIAGO CARDIM
(originalmente publicado no JUDÃO.COM.BR)
Em janeiro do ano passado, poucos dias antes da estreia da segunda temporada da série do Justiceiro no Netflix, ninguém menos do que Gerry Conway, o cara que CRIOU o personagem nos gibis, teve que vir à público dizer o óbvio: “Oficiais da lei não deveriam abraçar o símbolo do Justiceiro”. E ainda completou: “Se um homem da lei, representando o nosso departamento de Justiça, o sistema, coloca o símbolo de um criminoso em seu carro, ele está dando uma declaração sobre o seu entendimento do que é a lei para ele”.
Por qual motivo o roteirista foi assim tão específico? Porque policiais americanos passaram a ostentar em seus carros a caveira que Frank Castle traz no peito como símbolo — numa variação que trazia uma pequena linha azul, em alusão ao slogan “Blue Lives Matter” — vidas azuis, a cor da farda dos oficiais ianques, importam, numa comparação e alusão absolutamente descabida com o movimento “Black Lives Matter”, é preciso dizer. Mas fazer isso usando a caveira do Justiceiro é, de fato, um absurdo, uma espécie de carimbo com licença pra matar. E que bom que não apenas Conway, mas também o cidadão comum, imediatamente sacou isso.
Que o diga Cameron Logan, chefe de polícia na cidade de Catlettsburg, Kentucky. Assim que as viaturas com a simbologia macabra começaram a circular, o departamento passou a receber ligações indignadas. “Eles dizem que o logo do Justiceiro quer dizer que estamos lá fora para matar pessoas — e este não é o significado por trás disso”, afirmou o oficial, em entrevista ao io9. “Isso nunca passou pelas nossas cabeças”.
Ah, mas deveria, né? Porque vamos lá: o Justiceiro é um fora da lei que faz justiça com as próprias mãos. É um assassino. Quem reforçou isso foi OUTRO roteirista de quadrinhos, Kurt Busiek, que entrou numa ~polêmica lá no Twitter ao reforçar a questão e dizer que, SIM, Frank Castle é a porra de um serial killer. “Eu gosto do Justiceiro. Ele pode ser muito divertido de ler ou escrever. Ele também é um assassino serial psicótico: isso é parte de seu conceito central. Grupos de policiais não deveriam usar seu emblema para mostrar qualquer tipo de solidariedade”.
“Ele representa vingança, não justiça. Sua família nunca terá justiça, pelo menos na sua cabeça”, explica Busiek, que já teve a chance de escrever o anti-herói não apenas na continuação de Marvels mas também num icônico What If? batizado de “O que aconteceria se o Justiceiro tivesse matado o Demolidor?”. Pois é. “Nunca vai ser o suficiente para ele. Ele está tentando vingar as mortes deles e vai fazer isso até que ele morra. Isso gera ótimas histórias, concordo. Mas isso não faz dele menos serial killer”. Logo depois, o cara ainda adicionou: “a coisa mais bizarra desta discussão toda são as pessoas insistindo que ele não é um serial killer porque ele só mata pessoas ruins. É meio como dizer que alguém não é um estuprador se só estupra pessoas ruins”.
Como a repercussão de seus tuítes foi considerável, depois Busiek tratou de fazer uns RTs devidamente comentados mostrando uma série de opiniões / defesas bizarras que as pessoas têm sobre o matador, tipo “ele só mata bandidos e não inocentes”, “ele está numa guerra e soldados não são serial killers não importa quantas pessoas eles matem”, “ele obedece a uma moral superior” e, claro, “Frank vive nas brechas do sistema de justiça, satisfazendo uma necessidade da sociedade que apenas ele conhece”. DAMN. “Fico feliz que a imaginação destas pessoas não resulta exatamente no que elas desejam”, afirmou Busiek. Quem dera você estivesse certo, Kurt…
Não bastasse caras como Conway e Busiek dizerem isso, a própria Marvel resolveu que era a hora de ninguém menos do que Frank Castle, nas páginas de seu próprio gibi, deixar tudo claro como água. A fase atual do personagem, com roteiro de Matthew Rosenberg e arte de Szymon Kudranski, vem mostrando o Justiceiro numa jornada global para derrubar o Barão Zemo e a HYDRA. Mas depois de uma incursão bastante violenta na Bagalia, uma ilha fictícia controlada pelo grupo criminoso, Frank é oficialmente considerado um terrorista internacional — afinal, o país vem tentando ser reconhecido pela ONU e tudo mais, apesar das atividades obviamente realizadas por baixo dos panos.
Na edição 13 da atual HQ do sujeito, o Justiceiro desembarca novamente em Nova York, que curiosamente é uma cidade cujo prefeito não é lá o maior fã do sujeito da caveira — no caso, o “respeitável” empresário Wilson Fisk, outrora conhecido como Rei do Crime.
Enquanto se esgueirava por um beco, em busca de outra de suas presas, o vigilante acabou enquadrado por uma dupla de policiais que acreditou se tratar de um suspeito que estavam buscando. Mas quando a caveira em seu peito se revela, o sorriso toma conta dos rostos de ambos. “Os caras no grupo não vão acreditar”, diz um deles. Frank não entende porra nenhuma e pergunta de que grupo eles tão falando — e, depois de forçar uma selfie com o sujeito, eles explicam. “Nós temos meio que este clube. É quase um movimento. Nós acreditamos em você”. E aí apontou para o adesivo com o símbolo da caveira na viatura.
Eles tentam explicar que não é algo que representa toda a força policial. “Mas alguns de nós acreditam no que você faz. Faremos o que for preciso para tomar as nossas ruas de volta”. Ou seja: meter bala em quem quer seja, tornando-se ao mesmo tempo júri, juiz e executor. Mas quando Castle arranca o adesivo do carro e o rasga, os policiais ficam incrédulos.
“Vou dizer isso só uma vez: nós não somos iguais. Vocês fizeram um juramento de defender a lei. Vocês protegem as pessoas. Eu desisti de tudo isso faz tempo. Vocês não fazem o que eu faço. Ninguém faz”, afirma Castle. “Vocês precisam de um modelo a seguir? O nome dele é Capitão América e ele vai ficar feliz em recebê-los”.
Claro que os dois policiais ficam pouco satisfeitos em receber um puxão de orelhas deste tamanho e perguntam quem diabos ele pensa que é, afirmando que, gostando ou não, ele teria começado algo e agora está pedindo que outros não sigam o seu exemplo? “Se eu descobrir que vocês estão fazendo o que eu faço, vocês são os próximos da minha lista”, dispara Frank. “Cuidado com o que você diz, Castle. Está começando a parecer bastante com uma ameaça”. E aí o Justiceiro não deixa por menos: “Sim, foi uma ameaça”.
A treta quase aperta entre os dois lados ali, até que os policiais são convocados para uma emergência via rádio apenas algumas quadras dali. “Bom trabalho, Castle. Agora você não tem mais nenhum amigo nesta cidade”.
Na real, ele nunca teve, né? Para a narrativa que vai se desdobrar dali pra frente, a sequência faz um baita sentido, justamente porque teremos de fato um Frank Castle como lobo solitário, caçando sozinho, sem poder se apoiar em ninguém tanto de um lado quanto do outro dos espectros da lei.
Mas também faz sentido DEMAIS pro mundo que se desdobra ao nosso redor e ao redor de um gibizinho que, ah, a gente já disse diversas vezes aqui mas não custa repetir, nunca é APENAS um gibizinho.