Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Se você não anotou a placa do caminhão, saiba que ela era TORMENTA 20.

O maior cenário brasileiro de fantasia completa duas décadas e, na campanha de financiamento coletivo para o lançamento de um novo livro de RPG, quebra uma porrada de recordes — incluindo o maior valor de arrecadamento nas primeiras 24h dentro do Catarse

Por THIAGO CARDIM

(originalmente publicado no JUDAO.COM.BR em maio de 2019)

Lá em 1999, o trio formado por Rogério Saladino, J.M. Trevisan e Marcelo Cassaro tinha lançado, nas páginas da revista Dragão Brasil, um RPG nacional de fantasia chamado Tormenta, ambientado no riquíssimo continente de Arton – o mesmo da cultuada HQ Holy Avenger, primeira semente do projeto que originaria o role playing game. Quatro anos depois, em 2002, no finado site A ARCA, lá estava eu publicando um artigo chamado A Tormenta Que Me Atormenta. Do alto de meus 23 anos, eu dizia que era um projeto que me incomodava porque não trazia nada de novo. Era, como eu disse, “um ambiente típico de Tolkien/AD&D, com orcs, trolls, fadas e duendes, cavaleiros, magos, ladrões e bárbaros”.

Bom, agora estamos em 2019. Com quase 40 anos de idade, grisalho, pai de dois filhos, de lá pra cá tive a chance de ler quadrinhos que se passam no mesmo universo de Tormenta; de ler romances inspirados no jogo; de conversar dezenas de vezes com os autores; e, claro, tive a chance de efetivamente JOGAR o diacho do RPG. Mais de uma vez. Sabe o que aconteceu? A minha opinião mudou radicalmente. Enxerguei um sabor diferente ali, muuuuuuuuuito distante de um Dungeons & Dragons da vida, apesar da matriz semelhante. Pude constatar a riqueza do cenário, o foco no desenvolvimento dos personagens de apoio, as muitas tramas paralelas… e tudo de um jeito bem único, bem brasileiro, com uma bossa e um humor que não existiam em nenhum outro cenário similar.

Pelo jeito, claro, não devo ter sido o único a conseguir enxergar estas qualidades todas aí — porque a base dos fãs dos caras parece ter só aumentado. Tanto é que, duas décadas depois, quando a turma da Jambô Editora (editora gaúcha hoje formada pelos sujeitos do Trio Tormenta original + turma da nova geração que traz nomes como Guilherme Dei Svaldi e Leonel Caldela) resolveu celebrar a data com uma campanha de financiamento coletivo para o lançamento de um novo livro, apropriadamente batizado de Tormenta 20, pra casa LITERALMENTE cair. Quer dizer, a casa não, o Catarse, né.

A campanha foi ao ar exatamente ao 12h00 da sexta-feira, dia 10 de maio. Vinte minutos depois, os servidores do site de financiamento literalmente caíram pela sobrecarga de acessos. Originalmente, a campanha visava arrecadar R$ 80 mil reais — mas a meta foi batida em apenas 1 hora. Com R$ 480 mil arrecadados nos três primeiros dias, Tormenta 20 ultrapassou todos os projetos da categoria games, incluindo RPGs, boardgames e videogames, e também bateu o recorde na categoria editorial. Atualmente, é o quarto projeto mais bem-sucedido da história da plataforma… e ainda tem quase dois meses de campanha pela frente. Hoje, já estão trabalhando com uma terceira fase de metas estendidas, com mais de 700% de sucesso. E este número ainda pode mudar, dependendo do dia em que você estiver lendo isso.

“De nós, eu sou o que está sempre em pânico. O cara que arruma as malas e acha que está esquecendo alguma coisa”, brinca Trevisan, num papo exclusivo com este que vos escreve. “Ninguém achou que ia falhar. Acho que não passou pela cabeça de ninguém. Mas essa paulada aí eu também não tava preparado”.

Embora esteja não seja o primeiro projeto de crowdfunding envolvendo Tormenta (no caso, em 2013 eles tiraram do papel Tormenta: O Desafio dos Deuses, um beat ‘em up para PC e Mac), Trevisan diz ainda que a recepção DESTE projeto faz com que eles enxerguem não apenas o tamanho da responsabilidade que têm enquanto criadores de conteúdo, mas também tudo relacionado, que se torna simplesmente enorme. “A responsabilidade, a recepção, o carinho dos fãs principalmente. E a força que Tormenta tem. É muito louco ver acontecendo. Como eu disse no Twitter no sábado, é menos pelo dinheiro (que óbvio, é sempre bom) e mais pelo significado dos números. É uma prova evidente da importância de Tormenta no mundo nerd brasileiro, da sintonia que temos com o nosso público”.

Ele conta que sua esposa, Camila, resolveu fazer um blog para coletar os testemunhos da galera que teve contato com RPG através de Tormenta, que ensinou os filhos, que usou o jogo como um meio para escapar da depressão. “Ela mal está dando conta. Isso é o mais legal de tudo. O sucesso do financiamento é um símbolo que todos eles vão poder carregar com orgulho, não só a gente. Estamos aqui há 20 anos, eles estão conosco, e ninguém vai embora tão cedo”.

A ideia original, inclusive, era esta. Dei Svaldi, também em papo com a gente, lembra que para lançamentos comuns a Jambô não faz financiamentos coletivos. “Mas Tormenta 20 não era um lançamento comum! Nenhum universo de fantasia brasileiro alcançou 20 anos de publicações ininterruptas. Não podíamos simplesmente lançar um livro da maneira tradicional, ou seja, desenvolvendo internamente e então lançando para o público apenas quando o material já estivesse pronto e fechado”, explica. “O marco de Tormenta foi impressionante, e só possível por causa dos fãs. Eles precisavam fazer parte de forma mais direta da celebração. A campanha #Tormenta20 não é sobre viabilizar um projeto financeiramente falando, muito menos uma pré-venda. É uma nova forma de produzir, de criar, em conjunto com a comunidade”.

Se ainda não ficou claro, Tormenta 20 será uma nova versão do Tormenta RPG original. As mecânicas básicas permanecem, mas retrabalhadas para serem mais simples, ágeis e divertidas. “Tormenta 20 engloba o material que a gente lançou nesses anos todos, trazendo o essencial para jogar”, contra Trevisan. “E claro, a gente pretende abordar vários outros assuntos em suplementos posteriores. Mas o que você tem em casa, da edição passada, não precisará ser jogado fora. Teremos um manual de conversão para que você possa adaptar o mais fielmente possível o conteúdo dos livros antigos”.

Segundo eles, a ideia é que a ambientação seja ampliada com o que foi sendo feito nos últimos anos, incluindo os acontecimentos de A Flecha de Fogo, o romance do Leonel Caldela lançado no fim do ano passado, e da Guilda do Macaco, a campanha online com os criadores transmitida pelo canal da Dragão Brasil no Twitch. “Em termos de história, as fronteiras dos reinos terão modificações, mas não vai ficar só nisso”, revela Guilherme. “Em termos de jogo, teremos uma nova classe básica, Inventor, e todo um conjunto novo de regras para a criação e modificação de itens, algo pelo qual muita gente espera”.

Dá pra dizer, portanto, que estamos falando de uma espécie de reboot de Tormenta, tipo Crise nas Infinitas Terras? Ou tá mais pra uma versão Ultimate do Universo Marvel, do tipo “vamos adaptar Tormenta para uma galera nova, duas décadas depois”? Trevisan prefere uma terceira descrição. “Dá pra falar que estamos falando de uma evolução natural tanto das regras quanto do cenário. O mundo mudou, nós mudamos, as tendências dos RPGs mudaram e achamos que Tormenta merece acompanhar estes rumos”. Ele completa cravando que Tormenta 20 traz coisas novas que o fã antigo vai gostar e mantém o estilo que ele sempre amou, mas o sistema novo está sendo feito e escrito de modo a dar apoio ao principiante, sem simplificar exageradamente ou idiotizar as regras. “Queremos que o leitor encontre um livro acessível no começo e cativante para o resto de sua vida de RPGista”.

Importante destacar que, no entanto, o que está acontecendo agora com Tormenta foi planejado pelos caras há cerca de três anos. “E é real”, afirma Trevisan. “A gente tinha uma data muito significativa, que era os 20 anos do cenário, e começamos a debater o que fazer. Existe uma linha lógica de acontecimentos que leva ao T20 e melhorar o sistema, renovar artes e textos faz parte disso. Era hora de nos prepararmos para os próximos 20 anos”, diz.

Mas o quanto esta recepção, estes polpudos 700%, de fato, mudam os planos originais? Claro, o livro vai ficar ainda maior e melhor, principalmente no que diz respeito a artes. “Também vai fazer todo mundo que está participando da campanha sair cheio de materiais adicionais, graças às metas batidas! De forma mais direta, vai nos permitir dar um passo necessário na direção do suporte digital que queríamos dar aos jogadores”, detalha Dei Svaldi. Uma das metas estendidas, por exemplo, é uma atualização no app rolador de dados, que vai ganhar uma funcionalidade para criar personagens de forma fácil e rápida, gerando um arquivo em formato PDF para impressão.

No entanto, uma frase do Guilherme deixa aí um gostinho de quero mais no ar. “O mais interessante é o que o sucesso da campanha abre de oportunidades para outras mídias”. ÔPA! Os fãs das antigas já ficam salivando pela tão anunciada, tão aguardada e tão adiada série animada de Holy Avenger, que depois se tornaria “apenas” um filme de animação (e que, segundo consta, chegou a passar pelo processo de captação de recursos). Mas pode ser MAIS do que isso?