Esta nossa dificuldade de falar sobre vida e morte
Acabei assistindo à série depois do hype e encontrei nela um caminho para entender e conversar sobre algo que está ao nosso redor e ainda cada vez mais presente
Por THIAGO CARDIM
(originalmente publicado no JUDAO.COM.BR)
Quando o projeto Vamos Falar Sobre o Luto? foi lançado, em 2014, no formato de uma plataforma digital de informação, inspiração e conforto criada por sete amigas, a ideia era tentar tornar este momento menos solitário e desamparado. O principal objetivo inicial, antes de sequer pensar num documentário ou o que quer que seja, era começar OUVINDO. Dando espaço para que as pessoas pudessem de fato FALAR SOBRE O LUTO. Contar suas histórias.
Porque a gente foi criado desde sempre com uma dificuldade tremenda de FALAR sobre a morte. É um tabu principalmente porque DÓI pra quem perdeu alguém que ama e dá MEDO pra quem tem que encarar a morte de frente. Morte tem a ver com dor, com sofrimento e tudo que a gente quer é esquecer a dita cuja o quanto antes. Vamos nos distrair, vamos mudar de assunto. “Se lembrar de quem morreu é um jeito de manter o morto em vida, dentro de nós”, disse o escritor Contardo Calligaris em uma coluna pra Folha de S.Paulo, mais ou menos na mesma época.
Neste mesmo texto, ele ainda referencia uma crônica de David Eagleman no livro A Soma de Tudo, na qual todos os mortos estão reunidos lá do outro lado, no Além, até o momento em que, aqui na Terra, seu nome é pronunciado pela última vez. Quando finalmente vem o esquecimento, surge alguém e leva o morto embora. Para todos na sala, fica a certeza de que aquela é sim a morte verdadeira. Ser esquecido.
Esta crônica me parece ter uma relação direta com The Good Place, série que só fui assistir muito tempo depois do hype, da ferveção toda, assim que começou a quarentena. Antes disso, via todo mundo falando sobre ela mas não tinha tido qualquer interesse até o momento, passando bem longe das conversas, teorias, spoilers, aquilo tudo que a gente já sabe que uma série que vira a moda da vez acaba gerando. Não peguei bode, nem nada. Foi só “ah, depois eu vejo”. E ficou pra depois MESMO. Trancados em casa, pedimos sugestões de conteúdos divertidos e The Good Place tava no topo da lista de indicações dos amigos. Devoramos as quatro temporadas quase que numa tacada só — e, de fato, gostei muito do que vi. Tinha uma leveza ali, uma graça que a gente tava precisando.
Mas tudo isso só na camada mais superficial. Porque The Good Place tava ali pra falar sobre morte. Justamente num momento em que o medo da morte mais nos persegue, nos cerca, nos assola dia após dia em meio a uma pandemia com mais de 500.000 mortos no mundo, sendo 60.000 deles só no Brasil. The Good Place tava ali pra me fazer, de maneira agridoce, rever minha própria relação com a morte — com a minha mortalidade e com a das pessoas ao meu redor.
Foi mais do que uma série divertida pra ver ao longo da quarentena. Foi uma espécie de terapia em forma de cultura pop.
A gente pode discutir, claro, o quão efetivas foram as viradas na trama de uma temporada para a outra, o Good Place que era Bad Place, as tentativas de reboot do cartunesco Michael (Ted Danson, simplesmente genial) e por aí vai. Ou mesmo as idas e vindas do relacionamento de Eleanor (Kristen Bell) e Chidi (William Jackson Harper). Do lado de cá, enquanto jornalista especializado em cultura pop, apesar de algumas questões pontuais, achei o roteiro bem amarradinho, os personagens principais bastante carismáticos (com destaque para a cibernética Janet vivida por D’Arcy Carden, maravilhosa, e o alucinado Jason de Manny Jacinto que trazia uma surpresa depois da outra, num espetáculo do mais puro non-sense).
Mas o meu ponto com The Good Place , definitivamente, não é este. Não foi e acredito que nunca vai ser.
Dia destes, tive uma conversa em vídeo com o meu filho, que não mora mais comigo depois da separação, a respeito da morte recente da avó, mãe da minha ex-esposa. E confesso que, para ter esta conversa, tive que me preparar DEMAIS. Porque sei que o pequeno, por uma série de razões, do alto de seus quase 10 anos de idade, tem dificuldades em lidar com os sentimentos, de colocar pra fora. E porque sei que eu mesmo sinto um aperto no peito toda vez que tenho que encarar o assunto de frente.
E neste ponto, The Good Place me ajudou DEMAIS.
Foi pouco, foi uma conversa curta, que ele logo quis substituir pelo seu assunto favorito do momento (no caso, o tal do Fortnite). Mas deu pra sentir que valeu a pena. Para deixar claro que podemos falar, conversar, extravasar, chorar. Que estou aqui para ele, ainda que não tenha todas as respostas. Tá tudo bem. Podemos relembrar o quanto ela era uma pessoa especial e o quanto ela faz falta, o quão deliciosas são as lembranças que temos com ela apesar da falta que ela faz (e faz mesmo, porque apesar de eu não estar mais junto com a minha ex-esposa, isso não apaga o quanto a mãe dela foi igualmente uma MÃE pra mim aqui em São Paulo, longe da minha terrinha natal).
Aliás, The Good Place é principalmente sobre isso. Sobre uma vida com lembranças que valem a pena.
Pensei muito nisso este ano, em março, ao lembrar mais uma vez da perda do meu pai. Ao chorar a falta que ele ainda me faz, três anos depois, ao pensar no quanto eu gostaria que ele pudesse ver um pouco da nova etapa de vida que vivo hoje. E ao pensar nas memórias que estou construindo pra mim mesmo depois de fevereiro, quando minha vida deu mais uma daquelas reviravoltas e recomeçou mais uma vez do zero. Não é a primeira vez. Não é, sem exagero, nem a segunda ou terceira vez que reinicio a minha vida sem nada. Pego tudo, empacoto tudo (roupas, gibis e sentimentos), deixo muito para trás e tento descobrir o que me espera lá na frente. Quando eu envelhecer, tal qual meu pai, que lembranças eu vou deixar para quem ficar aqui? Do que vou me lembrar quando for a hora de partir? Que gosto vai ficar na boca? Quem vai chorar por mim?
Da mesma forma que Eleanor, Chidi, Jason e Tahani, em cada uma das chances que eles ganharam, seja nos reboots do Michael, seja de volta aqui na Terra ao reviver seu passado em busca de um novo futuro, eu também estou buscando uma nova chance. Exatamente como eles, tive medo. Errei, fiz merda, escorreguei, me arrependi. Olhei pra trás e chorei ao pensar que, mais uma vez, fracassei. Mas mesmo sentindo isso, mesmo me achando um merda, levantei a cabeça, respirei fundo e MERGULHEI numa nova chance. Para, mais uma vez, me reencontrar. Ou talvez, quem sabe, me encontrar DE VERDADE pela primeira vez na vida.
Para quem ficou curioso, sim, está sendo bom DEMAIS. Deu medinho, deu medão, mas fui sem pensar e tá valendo MUITO a pena. Cada minuto.
Não estou, no fim, em busca daquele tal Bom Lugar, querendo me tornar o aspirante a bonzinho em busca do céu ou qualquer equivalente. Não sou perfeito. Estou sim querendo o MEU Bom Lugar. Aqui, dentro de mim. Aquele no qual vou conseguir me reencontrar mais do que em qualquer outro lugar físico para o qual me mude, que significa bem mais do que paredes, camas e armários. E só me reencontrando, assim como aconteceu com a Eleanor, é que eu posso ter as portas abertas para amar e ser amado. Para encontrar ALGUÉM. Só assim consigo construir novas memórias, novas lembranças, uma nova vida.
E só aprendendo a entender a minha própria vida, vou estar enfim preparado para lidar com a morte.