Jornalismo de cultura pop com um jeitinho brasileiro.

Alan Moore tem razão

Em uma esclarecedora entrevista pro El País o autor inglês prova que tá bem ligado no que acontece ao seu redor e se declara ainda mais afastado da indústria dos quadrinhos: “já tomaram muito do meu tempo”

Por THIAGO CARDIM

(originalmente publicado no JUDAO.COM.BR)

Nos últimos anos, dentro do círculo de leitores e críticos de quadrinhos, a palavra-chave para descrever o escritor inglês Alan Moore, mais até do que “genial”, se tornou “ranzinza”. Repousou sobre ele, especialmente depois da ascensão das adaptações de suas obras pros cinemas, a pecha de um sujeito chato que, trancafiado em um pub qualquer em Londres, não apenas não aceitava que seu nome estivesse nos créditos de filmes/séries mas se dispunha a reclamar sem parar da diversão alheia.

Mas, também nos últimos anos, AINDA BEM, conforme a gente (e aqui eu falo de quem escreve e quem lê) foi amadurecendo enquanto consumidor de cultura pop e conforme foi ficando claro o quanto a indústria AND uma parcela considerável dos tais ~fãs foi saindo do esgoto sem medo com toda a sorte de racismo, machismo e demais comportamentos, se tornou óbvio o quanto Moore não estava apenas sendo um velho barbudo e mal-humorado. Ele estava fazendo críticas absolutamente pertinentes. Não eram apenas e tão somente cutucadas de quem estava com “ciúmes” ou “inveja”. Era o olhar de quem sacou os sintomas de algo BEM maior.

Em 2016, quando anunciou que estava abandonando definitivamente os gibis em meio à divulgação de Jerusalem, seu imenso e aguardado segundo romance, o autor demonstrou uma clara preocupação criativa. “Eu acho que já fiz o bastante pelos gibis. Fiz tudo que podia. Acho que se eu continuar a trabalhar com quadrinhos, inevitavelmente as ideias vão sofrer e vocês vão me ver remexendo em coisas antigas que já fiz. Acho que tanto eu quanto vocês merecemos mais do que isso”. Mas tratou de complementar, usando as palavras de um personagem de seu próprio livro: “Tenho certeza de que existe uma boa razão para que centenas de adultos fiquem loucos para ler as últimas aventuras do Batman, mas eu não sei exatamente que razão seria esta”.

Recentemente, no entanto, em uma esclarecedora (e igualmente rara) entrevista pro El País, ele foi ainda mais incisivo do que em outras conversas similares: “estou cansado da indústria dos quadrinhos. Já tomaram muito do meu tempo”. Ele lembra que, quando começou nos quadrinhos, este era um meio criado para a classe trabalhadora, principalmente para seus filhos. “Produzia-se e distribuía-se de forma barata para um amplo público adolescente, a idade em que o público tem mais fome de ideias novas e radicais. Agora, quase todos os quadrinhos são para a classe média e falam sobre ela. Grande parte desse público literariamente moribundo é gente de meia idade motivada pela nostalgia de sua infância e de tempos mais simples”. E completa: “Aquilo que foi nossa forma artística hoje é uma paixão em via de desaparecimento para gente que ficou presa na adolescência”.

Se esta não é a melhor descrição possível do homem branco que choraminga por conta das menores migalhas de diversidade que existam nos gibis da Marvel ou da DC, sempre que uma mulher ou negro se torna protagonista de qualquer coisa, olha, eu juro que não sei o que é.

A treta, claro, não está apenas e tão somente nos leitores, mas também nas grandes companhias, em especial as duas grandes, Marvel e DC, às quais se refere como sendo “o Inferno de Dante”. Ele diz que repudiou 80% de seu trabalho nos quadrinhos, já que não lhe permitem ser seu dono. Pois é: é menos sobre LUCRO (o que já seria bem justo, importante que se diga, já que criadores devem ser remunerados SIM) e mais sobre LIBERDADE CRIATIVA. “Alienaram-me completamente. Não guardo cópias em casa e não voltarei a ler essas obras”. E em se falando de um cara que escreveu V de Vingança, Watchmen e afins, porra, é triste demais ouvir e CONCORDAR com isso. “Muitas vezes foi impossível manter a liberdade de minhas criações. E encontrei muita gente que tentou se aproveitar do meu talento”, reforça. “Voltaria a tomar todas as minhas decisões morais, apesar do seu custo. Não tenho remorsos. O único, às vezes, é o próprio fato de ter me dedicado aos quadrinhos”.

Vale lembrar aqui, contudo, que isso JAMAIS significou que Moore odiasse OS QUADRINHOS enquanto forma de arte, saca? Porque, sim, este é outro mito ao redor do britânico que rapidamente se espalhou como verdade absoluta. No final de 2019, quando Moore saiu de sua reclusão midiática para anunciar que, apesar de ser um anarquista convicto que não votava há cerca de quatro décadas, estava declarando seu voto no partido trabalhador para evitar o crescimento ainda maior dos conservadores da extrema-direita, sua filha Leah Moore fez uma thread no Twitter de apertar o coração para esclarecer isso de uma vez.

Cansada de ler comentários dizendo que era triste que Moore “claramente não leu nenhum dos muitos maravilhosos quadrinhos modernos dos quais ele realmente poderia gostar” e também “claramente nunca assistiu a nenhum dos filmes divertidos inspirados em quadrinhos ou experimentou a alegria, o apoio ou a inspiração que eles trazem para milhões de pessoas”, ela fez questão de ressaltar que não apenas seu pai sempre foi fã de gibis como também da figura dos super-heróis. “Ele largou seu trabalho e entrou de cabeça nos quadrinhos, o que naquela época era considerado uma loucura. Ele preencheu cada um daqueles painéis com amor. Ele os amou tanto que tentou fazer com que se tornassem algo que provocasse reflexão e sentimentos, que abordasse questões importantes, que falasse com as pessoas da mesma forma que os super-heróis falavam com ele”.

Leah relembra que ficou com a coleção dele de quadrinhos da Marvel e que se lembra com carinho de quantas vezes ele falou com empolgação de encontrar uma lojinha que vendia quadrinhos de segunda mão da Casa das Ideias, por exemplo, que lhe permitiria encontrar este ou aquele volume que faltava. “Ele não podia amar mais os gibis de heróis nem se tentasse. Jack Kirby era seu ídolo, [Steve] Ditko era seu ídolo. Foi o amor que fez ele ser quem ele é”. E ele sequer via, segundo a filha, diferença entre escrever um gibi leve como o do Tom Strong ou uma coisa cabeçuda, repleta de referências filosóficas. Tudo era feito com paixão.

Mas Leah, que também se tornou escritora de gibis, reforça que o problema do pai com a mídia das HQs é que ela é dominada por “déspotas corruptos”, pessoas que abusavam de quem realmente fazia a mágica acontecer e que não valorizavam (e ainda não valorizam) a contribuição dos criadores. “Ele já os odiava antes mesmo de Watchmen. Ele já sabia que Kirby tinha sido enganado. E isso aconteceu de novo e de novo e de novo. Não foi apenas uma negociação que deu errado, ou um pouco de azar. Isso o quebrou. A coisa que ele mais amava, na qual despejou todo o seu tempo e energia por toda uma vida. Ele não podia mais fazer isso”.

Então, ele cumpriu suas obrigações com os criadores parceiros de fato, fez os projetos que podia de fato controlar, mas não tinha sequer mais interesse em procurar gibis para ele ler, enquanto consumidor, nas lojas. “Isso é muito triste e destrói meu coração. Então, para as pessoas que prosperam agora, nesta indústria incrível, na qual nós todos podemos encontrar nossos nichos, onde há tantos quadrinhos que não daria pra comprar todos nem se quiséssemos, saírem dizendo que Alan Moore está maluco por odiar super-heróis ou o que eles se tornaram para ele, é inacreditável”.

Leah está certíssima e o próprio Alan, inclusive, também. E isso fica cada dia mais e mais claro. Não só sobre a indústria de quadrinhos, mas também sobre a cultura pop, como um todo.

“Support Your Artist Friends in 2020”, dizia um GIF em amarelo berrante que rodou pra caramba no Twitter nos últimos dias de 2019. Pois é. Ainda tem coisas boas saindo pela Marvel e pela DC, Tom King, Jason Aaron, esta galera toda? Tem sim. Mas lembre sempre da galera do Beco dos Artistas de tantos e tantos eventos, ralando pra colocar seus trampos na rua. Esta galera independente aí, da mesma forma que o Moore fez a vida toda, preenche cada um destes quadrinhos COM AMOR. Vamos não apenas ajudá-los a continuar, mas também a continuar AMANDO o que fazem e consomem. Como a gente. Como eu e você.